Poeta da casa do silêncio

Fernando Paixão é poeta, crítico literário e professor de Literatura Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP

 11/01/2019 - Publicado há 5 anos

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Fernando Paixão – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

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Quando a poesia é cultivada em silêncio — sem preocupação de se mostrar ou de ser logo publicada —, por certo ganha uma camada a mais de autenticidade. Faz com que a figura do autor recue de seu pode  r inato e ganhe serenidade com a criação; mais que isso, ele se coloca à escuta das próprias palavras que, afinal, pertencem ao mundo antes de chegarem aos versos do poeta. E, quando isso acontece, os poemas permanecem na gaveta (e no tempo) à espera de uma maturação interna que, ao cabo, fará toda diferença no seu modo de dizer. A cada novo rabisco ou correção, ocorre a depuração em nome de uma poética limpa e certeira.

Ecléa Bosi pertence a essa linhagem de poetas que se subsumem à poesia, por força do encanto e da humildade. Psicóloga e pesquisadora renomada, de longa carreira dedicada à Universidade de São Paulo, sempre foi uma leitora contumaz de poesia (entendida como o pão de cada dia) e por décadas entregou-se a lavrar alguns textos —  conjunto que agora ganha edição póstuma no livro A casa e outros poemas (Com-Arte, 2018).  Ao todo, reúne 43 escritos, que revelam uma especial sensibilidade para descer ao cotidiano e dele retirar uma camada de transcendência.

Diz ela: “Se mora alguém nessa pequena casa/ e vê o jardim atrás dessa janela/ terá sentido o palpitar da asa/ do sonho que esquecemos dentro dela?” (p.23). São versos que recuperam uma  visita à moradia de outrora, com destaque para a romãzeira, e que se perguntam pela permanência da experiência passada. Mas, já no modo de dizê-lo, cria um certo “palpitar”, reminiscência viva. O sujeito lírico atrai para si toda a inquietude da pergunta, coloca-se no cerne de uma perda dolorida para, concluir ao final: “Eu fui descendo a rua do passado/ deixei a casa onde a saudade mora/ com meu andar amargo e fatigado/ cheguei ao mundo, onde pereço agora. (p.24)”. Entre o tempo pretérito e o presente, palpita a asa da poesia.

São muitos os temas da intimidade que aparecem nos poemas de Ecléa, em consonância com o sentido da casa. E podem ser compreendidos à luz do pensamento de Bachelard, quando o filósofo afirma que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (p. 200, Pensadores). Em assim sendo, o efeito poético decorre desse mesmo ato de habitar as coisas e espaços em volta, implicando uma estreita correlação entre o corpo e as circunstâncias. Com esse espírito, os poemas evocam tanto a moradia antiga, como a chuva intensa e a estrela do mar, mas também visitam cômodos escuros,  em que aparecem ratos e perdas que produzem “um travo na garganta” e “espesso sofrimento”.

É por isso que “Inventário” inicia de maneira tão lúcida e direta: “Agora nada mais/ que a sinceridade do andaime/ da espinha e do sal/ a harmonia desapegada” (p.19). Ao associar o estado sincero da expressão à harmonia do desapego, a autora na verdade está ressaltando o valor ético da palavra poética — que perpassa as coisas do cotidiano para alcançar outros ares simbólicos. Contudo, não se conclua dessa premissa que a forma seja desapegada ou coisa assim. Pelo contrário: o requinte da nossa poeta está em saber compor uma justa medida para a sua voz.

Ecléa por certo buscou inspiração nos seus escritores de cabeceira — Rosalía de Castro, Cecilia Meireles e Jorge de Lima, entre outros — e mostra aderência a uma tradição lírica de fortes ligações com as formas clássicas de composição, nas quais a métrica e a rima desempenham papel fundamental. Não por acaso, diversos poemas do livro fazem referência ao modelo praticado (elegia,  epitáfio, cantiga ou canção), como que a exercer uma espécie de “sinceridade do andaime” e a preparar o leitor para o ritmo que virá a seguir. Tal desapego, contudo, não a exime de uma performance à altura.

Sobressai então uma dupla qualidade no estilo, que cumpre salientar. De um lado, a autora revela claro domínio da forma fixa, sabendo aliar o imaginário essencial a uma cadência sonora envolvente; de outro, Ecléa cultiva o verso livre até o limite de certa naturalidade, sem depreciar a força das imagens. Conforme o tema e o impulso, a forma se ajusta e o poema encontra caminho. Ao cabo, o livro resulta numa variedade rica de composições, mas perpassada por um sopro comum que diz respeito ao sentimento lírico de intimidade, apontado antes: “Tornei-me um instrumento de memória/ e a solidão que me retesa as cordas/ e me aperta as cravelhas, como um arco/ corre em meu peito oco e me arranca sons:” (p.60).

Diz a poeta que a fonte de suas palavras está plantada na solidão — e, por conseguinte, no silêncio. Quando isso acontece, a poesia ganha a cumplicidade do tempo e o pensamento constrói a mesma casa que habita. O ego se retrai, ficam de lado as imagens gratuitas e sobra o nervo do poema. Como consequência natural, também o eu lírico assume uma perspectiva ampla e sábia, mesmo que seja estimulado pela cena cotidiana. Lembra uma conhecida máxima de Garcia Lorca, que afirma: “todas as coisas têm seu mistério, e a poesia é o mistério que todas as coisas têm.”

Ecléa Bosi mantinha contato com tais mistérios e a poesia lhe deu meios de cultivá-los, em segredo. Não tinha intuito de os desarmar, nem de trazê-los ao plano da razão, que tudo quer compreender; em vez disso, entendia o ato poético como uma forma de coabitar os intervalos, de perceber as palpitações do cotidiano. Deixava-se disponível para o acontecimento, quando e como viesse, sem ansiedade de chegar ao poema.

Com o tempo, as palavras se decantariam, o andaime  do texto apareceria. E podia resultar até numa “Cantiga de roda”, concluindo em tom de lamento: “E das cordas emotivas/ Partiu a canção alada,/ Antes que o dia acendesse/ Os vitrais da madrugada” (p.76). As cordas emotivas, essas sim, podem romper o silêncio.

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