Paralelismo em frangalhos: quando a gramática tropeça e a arte brilha

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH/USP

 07/08/2024 - Publicado há 1 mês
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal

 

Não é novidade que, entre os elementos utilizados para construir definições menos subjetivas sobre o belo, a noção de simetria tem lugar de destaque. Seja a conhecida imagem do Homem Vitruviano, composta por Leonardo da Vinci (1452-1519) em fins do século XV, seja a miríade de anúncios de clínicas dedicadas à “harmonização facial”, a valorização das formas simétricas conta com a adesão de gregos, renascentistas e contemporâneos.

Essa associação entre simetria e beleza, mais reconhecível na concretude das imagens, tem efeito também sobre os usos da língua. Entre formas linguísticas coordenadas, o uso de termos simétricos é conhecido como paralelismo (seja sintático, seja semântico) e, via de regra, a quebra do paralelismo é um “vício” a ser evitado – embora, como toda boa regra, essa também tenha suas exceções.

Suba com estilo: um recado especial para você

Consideremos a seguinte frase, exposta nos elevadores de um condomínio residencial: “Vamos observar que o elevador social é destinado ao transporte de pessoas, enquanto o de serviço ao lixo, cargas, animais de estimação e banhistas”. A quebra de paralelismo (logo, a perda de simetria) aqui ocorre na inconsistência da estrutura entre as duas partes da frase. No primeiro segmento, há uma construção clara e direta: “é destinado ao transporte de pessoas”. Espera-se que a segunda parte siga um padrão semelhante para manter a coesão e a fluidez, algo como “[é destinado] ao transporte de lixo, cargas, animais de estimação e banhistas”.

Do ponto de vista linguístico, o paralelismo sintático refere-se à repetição de estruturas gramaticais similares dentro de uma sentença. Esse recurso é tido como fundamental para a construção de frases claras e harmoniosas, facilitando a compreensão do leitor. A quebra desse paralelismo, por sua vez, ocorre quando há uma interrupção nessa simetria estrutural, resultando em uma sequência desorganizada e potencialmente confusa. A estrutura inconsistente força o leitor a reprocessar a informação, o que pode causar confusão.

A literatura e a comunicação eficaz dependem não apenas da transmissão clara de ideias, mas também da estética e harmonia das frases. O paralelismo sintático contribuiria para uma leitura mais agradável e ritmada. A ausência dele pode resultar em uma frase que soa estranha ou desajeitada, como no caso em análise. Mas nem sempre.

Quando a quebra vira recurso

Uma pessoa pode gostar de sorvete, pudim, bolo e banho de chuva? Certamente. Entretanto, se esse enunciado lhe causou alguma estranheza, é porque você sentiu falta de paralelismo semântico: além da simetria sintática, estrutural, espera-se também que os termos enumerados pertençam a um campo semântico afim (no exemplo, após a lista de sobremesas, a menção a “banho de chuva” provoca a quebra).

A quebra de paralelismo, porém, nem sempre é defeito. Contrastando com a construção desajeitada do exemplo anterior, Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, recorreu intencionalmente a uma quebra de paralelismo para construir uma das frases mais conhecidas da literatura nacional: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. Nesse caso, o autor emprega a quebra de paralelismo semântico como um recurso estilístico para alcançar efeito literário.

A justaposição de “quinze meses” (tempo) e “onze contos de réis” (dinheiro) é deliberadamente incongruente, criando uma ironia que reflete a visão cínica do narrador sobre o amor e as relações mercenárias. Essa quebra de paralelismo não confunde o leitor, mas o provoca a refletir sobre o significado implícito. Machado utiliza a dissonância para enriquecer a caracterização e o tema. A quebra de paralelismo aqui é uma ferramenta narrativa que adiciona profundidade ao texto, sugerindo que o amor de Marcela tinha um valor monetário mensurável, já que sua duração coincidiu com a duração do período em que o narrador-personagem teve meios para custeá-lo.

Entre acertos e artifícios literários

A quebra de paralelismo, quando não intencional, pode prejudicar a clareza, coesão e harmonia de um texto, tornando a comunicação menos eficaz. No entanto, quando usada deliberadamente, pode servir a propósitos estilísticos e literários profundos, como exemplificado por Machado de Assis. A análise do paralelismo revela sua importância fundamental na construção de frases claras e coerentes, ao mesmo tempo em que reconhece o potencial artístico de sua manipulação consciente. Assim, a chave está na consciência e na intenção com que o paralelismo é utilizado, diferenciando entre um erro de construção e uma escolha estilística propositada.

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