

Mas que não se confunda esse “desgoverno” com as acepções usuais da palavra, como “ausência de governo” ou “perda de controle”, não obstante a falta de domínio das competências necessárias ao exercício da função por Bolsonaro e seu staff. Mais do que um “mau governo”, outro significado da palavra, o sentido profundo do “desgoverno” sob o qual estamos vivendo talvez se encontre mais explicitamente formulado por Laymert Garcia dos Santos em seu artigo: “Nesse caso, deveríamos compreender a expressão ‘dois anos de desgoverno’ em sua acepção positiva, isto é, como dois anos de uma política deliberada de destruição das instituições, de decomposição da nação e de desconstituição da sociedade brasileira” (p. 220). Como evidência desse intuito destrutivo, alguns textos relembram a declaração de Bolsonaro em jantar oferecido a representantes da direita estadunidense na Embaixada do Brasil em Washington, em 17 de março de 2019, quando afirmou: “Nós temos de desconstruir muita coisa, de desfazer muita coisa para depois recomeçarmos a fazer”. Não é casual, portanto, que “desconstrução” e outros termos correlatos (“destruição”, “decomposição”, “desconstituição” etc.) sejam praticamente onipresentes no livro, conferindo, com isso, uma certa unidade de diagnóstico ao conjunto de reflexões que compõem essa obra coletiva, a despeito de sua diversidade.
Na linguagem nativa do bolsonarismo, de acordo com a qual é “comunismo” ou “esquerdismo” tudo aquilo que não é espelho, tratava-se de desconstruir tudo o que teria sido obra “comunista” ou “esquerdista”. Mas, como sinalizam diversos artigos do livro, trata-se na verdade da desconstrução do pacto da Constituição de 1988, que apontava para o horizonte de construção de uma nação moderna que superasse os males de um passado colonial, escravista, patriarcal, patrimonialista, autoritário etc., com Estado de direito, democracia política, soberania econômica e bem-estar social. Fica claro, contudo, que os ataques a esse horizonte não foram raios da eleição de 2018 num céu político antes completamente azul, o que justifica que os artigos não fiquem circunscritos aos dois “primeiros anos de (des)governo”. A maioria recua no tempo, da formação social brasileira a acontecimentos políticos do passado recente, e alguns outros avançam, com propostas para um futuro de superação desta agonia, a qual, com a atual pandemia e sua gestão federal criminosamente inepta, ganhou literalidade para centenas de milhares de brasileiros – atingia-se a marca de 300 mil mortes no começo de 2021 (em 24 de março), número que já é mais do que o dobro quase um ano depois, chegando hoje (dados de 10 de março de 2022) a 654.147.
Para enfrentar o desafio de contribuir com o debate público fornecendo elementos para a compreensão do fenômeno da emergência bolsonarista em sua complexidade, Ricardo Musse (professor de Sociologia da USP e editor do site A Terra É Redonda) e Paulo Martins (professor de Letras Clássicas e diretor da FFLCH-USP) mobilizaram sua ampla rede de interlocutores, reunindo professores e pesquisadores internos e externos à USP (Unifesp, Unicamp, UFBA, UFPA, UFMG, UnB, UFF, UFRJ, CNRS, UFG, UFPB, UFABC) e de origens disciplinares variadas (filosofia, direito, ciência política, comunicação, economia, cinema, letras, sociologia, teologia, história, educação, saúde pública), além de alguns militantes políticos. O resultado é um conjunto bastante heterogêneo de textos no que diz respeito ao ângulo das abordagens, ao grau de aprofundamento das análises, à acessibilidade da linguagem e também à correção textual (quanto a este último aspecto, a edição do livro, não obstante o bom projeto gráfico, peca por delegar aos próprios autores a revisão de seus artigos). Além da introdução dos organizadores e do prefácio de Vladimir Safatle, são ao todo 41 contribuições, de nomes que vão desde os melhores intérpretes e comentaristas da realidade atual no campo da ciência política propriamente dita, como André Singer e Luís Felipe Miguel, até intelectuais de renome e importância para a história das ciências humanas no País, como por exemplo Marilena Chauí ou Michael Löwy. Apesar de toda essa diversidade, é notável a presença tímida de intelectuais mulheres, por exemplo, que, com apenas três textos, não perfazem 10% do total das colaborações.
Como projeta Leda Paulani, “teses e mais teses haverão de surgir, quiçá por décadas, na busca de encontrar a explicação mais consistente para a tragédia nacional”, dada a inegável complexidade do fenômeno (p. 227). O que não quer dizer, evidentemente, que até lá a universidade não tenha nada a dizer sobre o assunto, antes muito pelo contrário. E a publicação de Primeiros anos de (des)governo é prova disso, de uma academia que procura estar à altura do compromisso público que lhe dá sentido e razão de existir. Existência, aliás, sempre ameaçada em contextos de governos de tendência autoritária e obscurantista, como é o atual, o que implica resistência e luta contra ele. Para derrotá-lo, no entanto, vale o alerta de Cícero Araujo: “Mas iludem-se os que pensam que, para o derrotar, será suficiente unir todas as correntes políticas, à direita e à esquerda, no próximo embate eleitoral. Antes disso, será preciso estreitar o diálogo com as maiorias que nenhuma ligação orgânica têm ou terão com qualquer força política, e que neste exato momento se batem, aflitos, para sobreviver aos dias penosos que o país está vivendo. O que significa que muitas vozes engajadas serão necessárias para repercutir essa aflição e levar uma resposta clara, uma proposta muito concreta mostrando como as forças democráticas, e só elas, serão capazes de saná-la” (p. 67). Nessa tarefa, de “esclarecer o pensamento e pôr ordem nas ideias”, para recorrer a uma formulação clássica de Antonio Candido, a Universidade pode e deve dar a sua contribuição.