
Katia Rubio – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Antes de se tornar o fenômeno midiático que se tornou, os Jogos OlÃmpicos tiveram a sua história registrada de diferentes formas. Muitos dos estádios e ginásios construÃdos para as competições olÃmpicas permanecem em atividade, alguns mantendo a forma original, outros adaptados à s circunstâncias da cidade ou do paÃs que realizou o evento. A permanência de um gigante de concreto em meio à cidade é um dos registros indiscutÃveis de tudo o que aconteceu em seu interior, é a caixa depositária de façanhas humanas que remetem à memória afetiva não apenas de quem competiu, mas de quem acompanhou proximamente um ritual agonÃstico. A questão dos custos e da ocupação da estrutura fÃsica dos Jogos OlÃmpicos tornou-se tão fundamental ao Comitê OlÃmpico Internacional que o plano de uso futuro desses equipamentos conta no atual contexto pontos preciosos no projeto de postulação de qualquer cidade candidata. Na atualidade o COI, por estar comprometido com agendas internacionais, entende que demolir ou não ocupar adequadamente uma estrutura que teve alto custo para os realizadores não é aceitável, muito embora seja de responsabilidade do governo local a gestão e ocupação desses espaços que foram, por alguns dias, considerados solo olÃmpico. No caso das instalações do Rio de Janeiro a questão parece insolúvel. Passados quase dois anos inúmeras arenas, ginásios, estádios e a vila de atletas permanecem subutilizados, ou sem uso, onerando os já alquebrados cofres públicos. O chamado legado permanece um problema, e não uma herança.
Mas, aquilo que efetivamente poderia ser o registro de toda essa aventura, corre o risco também de deixar de pertencer ao paÃs. Vale lembrar que grande parte da memória relacionada com os Jogos OlÃmpicos realizados na primeira metade do século XX está registrada em documentos produzidos em formato de relatórios e cartas trocadas entre os envolvidos com a realização do espetáculo. Ali podem ser encontradas informações preciosas como nomes de pessoas e locais, a evolução de algumas ideias que se materializaram posteriormente, demandando discussões intermináveis entre os defensores de diferentes posições, bem como as alianças que permitiram que o Movimento OlÃmpico se tornasse aquilo que veio a ser. Mais curioso ainda é imaginar que tudo isso era realizado em um momento em que a circulação de cartas e relatórios dependia do tempo do serviço postal para chegar aos destinatários. Por isso as decisões demoravam meses para ser anunciadas, como foi o caso da escolha de algumas sedes olÃmpicas. Tive o privilégio de consultar vários desses documentos no Centro de Estudos OlÃmpicos de Barcelona e também no Centro de Estudos do Museu OlÃmpico de Lausanne, referências para estudiosos do olimpismo, e saber a importância e o valor que papéis como aqueles representam para quem estuda e pesquisa o desenvolvimento de instituições.
Isso é o esporte olÃmpico: o espetáculo grandioso e emocionante para uns e também a busca de um lugar na história com a afirmação de um pertencimento pouco ou nada compartilhado.
Dias atrás fui surpreendida pela notÃcia de que o Comitê Organizador dos Jogos OlÃmpicos do Rio de Janeiro de 2016 irá se desfazer dos 5.500 documentos relacionados ao processo de postulação e realização dos jogos por falta de recursos para catalogá-los e alojá-los adequadamente. Caso nenhuma instituição brasileira se responsabilize por essa tarefa, é provável que todo esse acervo seja encaminhado ao COI ou a algum centro de estudos no exterior. São mais que papéis ou HDs, é toda a história de um processo que envolveu centenas de pessoas que pensaram e viabilizaram uma candidatura que se sagrou vitoriosa perante outras com tantos requisitos, ou mais, que o Rio de Janeiro. Ali se encontram desejos, promessas, compromissos e contratos que foram total ou parcialmente honrados, ou simplesmente negligenciados. No afã da realização do evento poucos foram os especialistas interessados em investigar atentamente o conteúdo desse patrimônio, que agora corre o risco de ficar distante da atenção de quem precisa de tempo para poder digeri-lo e processá-lo. Imagino a perda que o envio desse material para outro paÃs possa causar aos futuros pesquisadores dos Jogos OlÃmpicos do Rio de Janeiro. Penso ser dever nosso proporcionar à s futuras gerações o entendimento de todo o turbilhão que representou esse evento em tempos tão conturbados como foram os últimos anos.
Assistindo à s celebrações dos 50 anos dos conturbados Jogos OlÃmpicos do México, percebo a importância da preservação de acervos. Naquela edição olÃmpica ficou evidente a aproximação entre polÃtica e esporte, com manifestações dos atletas norte-americanos do atletismo contra a discriminação racial e o apoio nacionalista por parte do boxeador George Foreman. Vimos também os desdobramentos da Guerra Fria no embate fÃsico entre as seleções soviética e americana de polo aquático tingindo de vermelho a água da piscina. E ainda a ginasta tcheca se recusando a cumprimentar as rivais soviéticas em razão da invasão à Praga, meses antes. O que pouco vimos, ou soubemos, foi sobre os registros do planejamento e da execução das obras olÃmpicas, denunciadas como superfaturadas, ou sobre a invasão da universidade mexicana que deixou dezenas de mortos faltando dez dias para o inÃcio da festa.
Espero que daqui a 50 anos seja possÃvel fazer uma retrospectiva do que aconteceu no Brasil e que esses documentos, mantidos em alguma instituição pública, ajudem a fundamentar uma análise dos ganhos e dos prejuÃzos relacionados aos Jogos OlÃmpicos. Em tempos de transparência seria inadmissÃvel chegar à conclusão de que dados precisos caÃram no esquecimento, juntamente com o acervo que o Comitê Organizador não teve dinheiro, ou vontade, para preservar.
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