Os direitos das pessoas com deficiência no acesso à saúde e à reabilitação em Cabo Verde

Por Ruth Neves dos Santos, doutora pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, e Helena Ribeiro, professora da FSP-USP

 25/09/2024 - Publicado há 2 meses
Ruth Neves dos Santos – Foto: Arquivo pessoal
Helena Ribeiro – Foto: Arquivo pessoal
Deficiência é um termo geral para descrever limitações e restrições entendidas como problemas que afetam uma estrutura ou função corporal; as limitações são as dificuldades na execução de ações ou tarefas baseadas em deficiências; restrições são problemas em participar de situações da vida. Portanto, uma deficiência é um fenômeno complexo que reflete a interação entre as características de um organismo humano e a sociedade em que ele opera.

A partir da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), criada pela ONU em 2006, a deficiência passou a ser considerada uma questão de direitos humanos e uma importante pauta de desenvolvimento, com cada vez mais evidências de que pessoas com deficiência experimentam piores resultados socioeconômicos e pobreza do que as pessoas sem deficiência. Isto se justifica pelo fato de encontrarem barreiras significativas à participação na sociedade, incluindo o acesso a programas e fundos de desenvolvimento, educação, emprego, assistência médica, comunicação e serviços de transporte, entre outros.

As barreiras físicas, atitudinais, econômicas e sociais constituem os principais determinantes negativos do processo saúde/doença das pessoas com deficiência. Estas tornam-se fatores causais de adoecimentos e exclusão social, que acentuam as iniquidades em saúde, uma vez que o empobrecimento das pessoas com deficiência resulta em maior potencial de morbimortalidade em comparação às pessoas sem deficiência. As dificuldades são ainda maiores em países de média e baixa renda, também categorizados como países do Sul Global, aquelas regiões geopolíticas fora do eixo Europa-América do Norte.

Os indicadores da OMS sinalizam que existam 1,3 bilhão de pessoas com deficiência em todo o mundo; destes, 700 milhões vivem em países em desenvolvimento. Nos próximos anos, o número de pessoas vivendo com uma condição de deficiência deve ser ainda maior devido ao aumento da prevalência das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) e ao processo natural do envelhecimento, com consequente perda funcional. O número de pessoas com 65 anos ou mais deve dobrar globalmente, passando de 761 milhões em 2021 para 1,6 bilhão em 2050. Associado a isto, o mundo continua enfrentando múltiplas crises, incluindo a pandemia, as guerras, a violência urbana, os acidentes domésticos e de trânsito e o empobrecimento pelo aumento do custo de vida, fatores que indicam que a deficiência deve ser uma preocupação ainda maior devido a sua incidência crescente.

A ausência de políticas públicas que promovam a inclusão social de pessoas com deficiência pode ter um impacto significativo tanto individualmente como na sociedade em geral. Em nível individual, uma pessoa com deficiência pode apresentar marginalidade que gera pobreza, falta de acesso à saúde, informalidade no trabalho, falta de reconhecimento legal e exclusão social. Da mesma forma, a deficiência pode contribuir para a deterioração da saúde mental e emocional das pessoas afetadas. Por outro lado, socialmente, pode representar uma perda entre 3% e 7% no Produto Interno Bruto (PIB) de um país, segundo dados do Banco Mundial. Além disso, gera um aumento da pobreza e da desigualdade, bem como uma diminuição da participação social.

O avanço da ciência e da tecnologia pode ampliar a acessibilidade e atenção à saúde, conquistando melhores níveis na expectativa de vida. Embora a população tenha passado a viver mais, também passou a viver com mais incapacidade, seja por sequelas de DCNT, por consequências de guerras, acidentes de trânsito, ou uso de drogas. Estima-se que em países de média e baixa renda as DCNT representem 66,5% de todos os anos vividos com deficiência. Mas se observa, mundialmente, um aumento no número absoluto de anos vividos com deficiências, combinado com uma prevalência crescente de condições incapacitantes, levando a uma alta demanda por reabilitação.

Neste artigo vamos discutir o grau de implementação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência por parte de Cabo Verde, por meio da identificação e análise das políticas públicas de saúde.

Cabo Verde e os desafios enfrentados

Cabo Verde é um estado-nação novo. Com 49 anos de independência, o país dispõe de parcos recursos naturais, em um território pequeno, com um relevo majoritariamente íngreme de origem vulcânica, com pouca pluviosidade. Não obstante todas as adversidades que enfrentou no momento da sua independência e nos seus primeiros anos entre os países mais pobres do mundo, é, atualmente, avaliado pelo Banco Mundial, por seus indicadores, como um país de médio desenvolvimento. Vem se destacando pela melhoria contínua no seu Índice de Desenvolvimento Humano, liderando o ranking dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) perante o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

País insular, Cabo Verde está localizado no Oceano Atlântico, a 500 km da costa ocidental africana, próximo ao promontório do Senegal. Forma um pequeno arquipélago constituído por dez ilhas e 16 ilhéus. Apenas nove ilhas são habitadas. Há dois grupos de ilhas: um primeiro formado por ilhas (Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Santiago, Fogo e Brava) em que predominam as paisagens montanhosas e relevos bastante acidentados, com altitudes que alcançam até 2.829 metros. O segundo grupo é formado por ilhas planas (Sal, Boa Vista e Maio), caracterizadas por extensas praias de areia branca, banhadas pelo Oceano Atlântico.

Pela sua localização geográfica, integra o grupo de países do Sahel, situado entre os paralelos 14°23′ e 17°12′ de latitude norte, e os meridianos 22°40′ e 25°22′ a oeste de Greenwich. Apresenta um clima árido e semiárido, quente e seco. Devido ao curto período de chuvas, o país apresenta parcos recursos hídricos. Assim, sua agricultura é essencialmente de subsistência. Do seu território, com 4.033 km2, apenas 11,41% é terra cultivável. A baixa produção agrícola, incapaz de satisfazer às necessidades da população, faz com que o país dependa fortemente de importações.

Cabo Verde apresenta taxas de mortalidade geral e materna entre as mais baixas da África Subsaariana, com redução significativa nas últimas décadas. A taxa de pobreza da população diminuiu de 49% em 1988 para 25% em 2014. A renda nacional bruta per capita teve aumento de US$ 1.050 em 1990 para US$ 6.320 em 2013. A taxa de alfabetização de 84,9% da população com 15 anos é superior àquela da África Subsaariana e ligeiramente superior à taxa de alfabetização global.

O Censo de 2021 de Cabo Verde registrou 491.233 habitantes (50,3% homens e 49,7% mulheres) e aproximadamente 145.952 agregados familiares. 38,22% dos cabo-verdianos moram em ambientes rurais e 61,74% em urbanos. A expectativa de vida ao nascer é de 80,5 anos para mulheres, e 73 anos para homens. Cabo Verde é um país predominantemente jovem, com mais de 43% da população abaixo de 25 anos, e aproximadamente 26% abaixo de 15 anos. Pessoas com 65 anos ou mais representam 6,1% da população.

Destaca-se que nunca houve guerra, ou revolução armada, no território de Cabo Verde, no âmbito nacional ou internacional. Nunca foi lançado míssil ou substância capaz de provocar mortes e/ou deficiência em massa na população. No entanto, o país apresenta elevada emigração de jovens.

No Censo de 2021, 47.021 pessoas foram registradas com ao menos algum tipo de deficiência (PcD), perfazendo 10,6% da população de Cabo Verde, sendo que 61,8% das pessoas com deficiência são mulheres.

Apesar de possuir o sexto menor PIB entre os países africanos, o estado de saúde da população de Cabo Verde é compatível com alguns países de alta renda e a expectativa de vida saudável, taxas de morbidade e mortalidade são melhores do que a média de países africanos.

Os esforços de Cabo Verde para a inclusão das PcD são exemplificados pela publicação temática sobre deficiência no Censo 2021, pautado em uma metodologia única e inovadora na série do país. Os dados gerados poderão ser utilizados como base para identificar fragilidades estruturais e amparar o desenvolvimento de novas políticas públicas voltadas para a efetivação do direito de acesso à saúde e à reabilitação das PcD e a inclusão plena da população com deficiência.

Embora esforços do país se traduzam em amparos legais robustos, verificou- se que o financiamento, a execução de serviços, a oferta de produtos e a fiscalização para efetivação desses direitos ainda se encontram deficitários, limitando o acesso a serviços de saúde e tornando a reabilitação um direito quase que inexistente da forma como é atualmente estruturada pelo governo. Serviço de reabilitação é provido por associação da sociedade civil, na capital do país, com apoio de recursos financeiros do governo e de entidades internacionais. Destaca-se, também, que as tecnologias assistivas, quando disponibilizadas, são vinculadas a ações de caridade alicerçadas por uma ampla organização das ONGs voltadas para o direito das PcD em Cabo Verde.

Tais lacunas legais são reconhecidas pelo país, que se esforça em mitigá-las, mas reconhece que não há uma política específica para a reabilitação. Na atual estrutura governamental, o Ministério da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social de Cabo Verde assumiu as atribuições nos setores da família, inclusão social, trabalho, segurança social e economia social e solidária e os referentes às PcD. Isso pode ocasionar o desenvolvimento de políticas assistencialistas, que não garantem a inclusão plena e a garantia dos direitos de vida em sociedade. Recomenda-se que políticas voltadas para a população com deficiência sejam norteadas pelo Ministério da Saúde, englobando os cuidados necessários em todos os níveis.

Destaca-se, também, a necessidade do desenvolvimento, capacitação e retenção no país de profissionais de saúde ativos voltados para o cuidado integral em todos os níveis de atenção, atuando na educação para a saúde, promoção da saúde e prevenção primária (educação em saúde), secundária (prevenção de agravos), terciária e quaternária (prevenção de iatrogenia). Enfatiza-se a importância da formação de Médicos de Família e Comunidade bem como de médicos fisiatras, para garantir a coordenação do cuidado em saúde e da reabilitação em forma de uma rede integrada entre as diferentes instâncias do cuidado.

Além disso, é imperativo adaptar os sistemas de informação em saúde para incorporar os conceitos da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), a fim de melhorar a coleta de dados e o monitoramento do acesso aos serviços de saúde por parte das PcD. A incorporação de novas tecnologias, como a capacitação profissional para uso rotineiro do prontuário eletrônico no Sistema Nacional de Saúde, deve ser considerada para reforçar estratégias de referência e contrarreferência na integração da rede de cuidados.

Cabo Verde apresenta ainda alguns desafios significativos que precisam ser endereçados para o avanço contínuo das políticas públicas de saúde, como exemplo:

• A insularidade do país tem um peso grande na geração de dificuldades para atendimento em saúde e reabilitação para as PcD, dificultando o transporte marítimo e a mobilidade para acesso aos equipamentos de saúde e reabilitação entre as ilhas. Multiplicar todos os serviços para as diferentes ilhas não parece a melhor decisão, pois seria oneroso e inviável economicamente e pela indisponibilidade de recursos humanos. Ademais, a demanda reduzida em algumas ilhas com pouca população deixaria os serviços ociosos, sobretudo os especializados.
• A distância entre as ilhas e povoados contribui para uma fraca coesão social, que, no caso das PcDs, é ainda agravada pelo relevo irregular das ilhas e a falta de calçadas adaptadas, limitando significativamente a mobilidade das pessoas com deficiência. Esse desafio estrutural requer esforços contínuos para pavimentar e melhorar as vias públicas, para garantir livre mobilidade com segurança.
• O transporte público não está adaptado para as PcD, e o transporte público nos meios rurais é quase que inexistente. O que existe são micro-ônibus particulares que não oferecem condições adequadas para a mobilidade de PcD.
• A rede de transporte, especialmente nas emergências, não é eficiente em termos de tempo para otimizar o atendimento em situações agudas, como no Acidente Vascular Cerebral (AVC), Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) ou politraumas, quando é crucial chegar rapidamente a um dos dois hospitais centrais para diagnóstico e tratamento imediato. Sugere-se explorar a viabilidade de implementar barcos ou helicópteros adaptados para transporte médico entre ilhas.
• Para tratamentos e procedimentos especializados não disponíveis no país, Cabo Verde arca com despesas elevadas no transporte dos pacientes e estadia prolongada deles e de seus acompanhantes no exterior, sobretudo em Portugal.

A formação de médicos locais fortalece os serviços de saúde e promove o desenvolvimento sustentável e o acesso equitativo aos cuidados médicos. O estabelecimento do curso de Medicina (Mestrado Integrado em Medicina), realizado em parceria com a Universidade de Coimbra, em 2015, representa um avanço significativo em Cabo Verde, para capacitar profissionais de saúde e alcançar os objetivos de equidade e inclusão delineados na Política Nacional de Saúde 2023-2027. Mas é necessário desenvolver uma valorização da carreira de profissionais de saúde, para promover sua retenção no país.

Para assegurar que a legislação desenvolvida seja implementada e fiscalizada na prática, é fundamental que Cabo Verde assine e ratifique o Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). Este protocolo estabelece a criação de um Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que recebe denúncias relacionadas a violação ou não cumprimento das disposições da CDPD pelo país. A adesão a este protocolo garantirá a efetividade de um órgão administrativo que possa assegurar o direito pleno à saúde e à reabilitação dessa população, promovendo uma sociedade mais inclusiva e justa.

Cabo Verde realizou progressos significativos nos cuidados e reabilitação do AVC, representando um modelo positivo para o país. No entanto, existem outras áreas que também podem melhorar com base nesses progressos. Os avanços em Cabo Verde certamente terão ressonância em todo o continente africano e em outros países de baixa e média renda, contribuindo para a saúde global.

(A cabo-verdiana Ruth Neves dos Santos teve a oportunidade de sair do país para estudar em um dos programas de cooperação internacional de Cabo Verde com o Brasil e, com recursos proporcionados pelo programa de bolsa de estudo de Cabo Verde, realizou a graduação em Medicina na USP. Concluiu o curso em 2007 e, em 2011, a residência médica em Medicina de Família e Comunidade. Em setembro de 2024 defendeu sua tese de doutorado, no programa de Saúde Global e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública, sob orientação da professora Helena Ribeiro, sobre o direito das pessoas com deficiência no acesso à saúde e reabilitação em Cabo Verde, como uma forma de contribuir com políticas públicas de seu país de origem. A escolha do tema deficiência tem relação com as experiências do convívio na infância e adolescência com vizinhos e hóspedes com deficiência em casa e na comunidade em Cabo Verde, e com as experiências e aprendizados como médica na gestão e coordenação do cuidado clínico das pessoas com deficiência do Instituto de Reabilitação Lucy Montoro — IMREA/HC-FMUSP, onde trabalha.)

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