Onde estão as pessoas trans nos serviços de saúde?

Por Lu Schneider Fortes, mestrando da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

 09/08/2021 - Publicado há 3 anos
Lu Schneider Fortes – Foto: Arquivo pessoal
Segundo matéria realizada pelo Estadão, em 2019, pelo menos 410 estudantes autodeclarades* trans estavam matriculades em universidades públicas brasileiras, o que equivale a menos de 0,1% do total de 533 mil alunes de instituições federais. Ainda de acordo com o Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019, publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), elaborado por Bruna Benevides, Sayonara Bonfim e colaboradores, 72% das travestis não possuem ensino médio completo e apenas 0,02% estão nas universidades. Brume Iazzetti, em sua dissertação de mestrado defendida recentemente, aponta a ausência de pessoas trans e/ou travestis nas universidades. A autora vai além, questionando “quem são essas pessoas”, visto que a população trans não é homogênea, sendo atravessada por recortes específicos de raça, classe, etnia, deficiência, entre outros, além de trajetórias de vida e de transição específicas, que implicam diferentes possibilidades de acesso e permanência. Por isso, antes de pensar sobre es profissionais de saúde trans e travestis, é preciso evidenciar que, na maioria das vezes, essas pessoas sequer conseguem chegar a esses lugares, principalmente se analisarmos intersecções de raça e classe.

O cuidado à saúde da população trans dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) vem sendo repensado ao longo dos anos. Apesar de algumas conquistas – como a portaria MS nº 1.820, de 13 de agosto de 2009, que colocou como um direito à saúde o uso do nome social no cartão do SUS e dentro dos serviços –, a população trans e/ou travesti ainda sofre diversas violências nesses lugares. O desrespeito aos pronomes é um exemplo, além do estigma e negligência no cuidado em saúde, visto que muites profissionais ainda se recusam a atender essas pessoas e, quando o fazem, muites as direcionam para serviços de hormonização, independente da sua demanda. Uma das razões para isso é a falta de profissionais trans e travestis ocupando estes espaços. Grupos de pessoas, como as que integram o Comitê Técnico de Saúde Integral da População LGBT, têm se articulado para orientar es profissionais de saúde sobre os cuidados à população trans e/ou travesti, através de estratégias como a elaboração do Protocolo de Atendimento para Pessoas Transexuais e Travestis no Município de São Paulo, publicado em 2020. Outra organização que também tem se mobilizado para pensar em estratégias é a Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos (Abrasitti), que conta com pessoas trans em sua formação, como em cargos de diretoria. Essas políticas têm melhorado o atendimento a usuáries dos serviços de saúde, mas será que isso se reflete na maneira como são tratades es profissionais de saúde que também são pessoas trans?

Formado em Biomedicina em 2017, no início de 2020 comecei a atuar enquanto profissional de saúde em uma unidade do SUS – a primeira vez que, além de estar atuando na área, eu entrava em um trabalho me identificando como uma pessoa trans. Durante a entrevista, isso já foi colocado ao perguntarem como eu gostaria de ser tratade e qual nome eu queria usar, ao que respondi que seria exclusivamente meu nome social: Lu. Em relação ao nome social, houve uma situação em que as informações de uma ficha que eu havia preenchido foram colocadas no sistema virtual, com o meu nome de registro. Nunca entendi nem como conseguiram descobri-lo, já que as únicas pessoas que deveriam saber disso eram as que eram responsáveis pelo meu contrato formal de trabalho.

Já em relação aos pronomes, na época falei que não me importava qual me tratassem, o que logo começou a me causar desconforto, visto que percebi que as pessoas me chamavam apenas pelo feminino, apesar de eu me identificar como uma pessoa trans não binária – provavelmente por ser mais fácil e pelas pessoas me “verem socialmente” daquela forma. Me sentindo invisibilizade, junto a um entendimento pessoal em lugar de transmasculinidade, fui pedindo às pessoas que trabalhavam comigo, todas cisgêneras, que sinalizassem a todes que eu gostaria de ser tratade no neutro e/ou masculino. Percebi que isso surtiu pouco efeito e, por isso, enviei uma mensagem ao grupo no WhatsApp do trabalho reforçando essa questão. Isso faz mais de seis meses e, até hoje, diariamente as pessoas se referem a mim como “ela”. Essa história é minha, mas garanto que poderia ser de muites outres, já que são comuns relatos de pessoas trans, binárias ou não binárias, que precisam se esforçar muito ou que ainda nem conseguem um direito básico, que é o respeito aos seus pronomes ou nome social.

Porém, é necessário reconhecer que houve avanços. Ainda falando do meu espaço profissional, sinto que minha presença lá gerou e ainda gera muitas questões e conversas, e o serviço tem se mobilizado para ser mais acolhedor às pessoas trans. Colegas de trabalho já pautam isso muito mais, e inclusive corrigem umes aos outres quando alguém erra os pronomes meus e de outres. É um longo percurso pela frente, mas percebi, ao longo do meu tempo lá, a importância da ocupação desses espaços por pessoas trans, assim como a necessidade de capacitações e demais estratégias para melhorar o acolhimento e o cuidado à saúde da população trans. Isso só será possível se construirmos em conjunto com as pessoas trans e/ou travestis, tanto enquanto colegas de trabalho como sociedade civil.

*Neste artigo foi utilizada a linguagem neutra, evitando o uso no masculino ou feminino, a fim de visibilizar pessoas trans não binárias e intersexo. Opto pela utilização de “e” e não “@” ou “x” por não serem pronunciáveis e pela falta de acessibilidade, uma vez que leitores de tela utilizados por pessoas com deficiência visual não leem “x” ou “@”. Para isso, segui a referência disponível aqui.


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