Objeto livro: para além da reificação

Por Jean Pierre Chauvin, professor de Cultura e Literatura Brasileira da ECA-USP

 06/02/2020 - Publicado há 4 anos
Jean Pierre Chauvin – Foto: Arquivo pessoal
Publicado pela primeira vez em 2013, O que é um livro? resulta de conferência homônima ministrada no ano anterior, por João Adolfo Hansen, em uma das unidades do Sesc São Paulo, sob a mediação de Joaci Pereira Furtado. O projeto da nova edição, em capa dura, é assinado por Gustavo Piqueira e Samia Jacintho, da Casa Rex. Para além do rico invólucro, capaz de atrair o leitor, a sobrevoar em livrarias, destaco algumas passagens do volume, de modo que ele experimente partes do todo, digamos, como tira-gosto. De imediato, diga-se que Hansen não aborda exclusivamente o assunto sugerido pelo título. Claro esteja, não se trata de uma monografia ou de um manual tecnicista com linguagem redutora ou simplista, cujo propósito fosse definir estreitamente o objeto do ensaio – o que suporia motivações incompatíveis com o repertório, a lucidez e o posicionamento político de seu autor.

Isso posto, o que esperar de um livro que se propõe a falar sobre o livro? Que ele trate não só do valor de troca ou do fim mercante e mercantilizável do artefato; mas sobre um artefato, espécie cultural dentre vários formatos e gêneros. Esse objeto está situado no tempo e no espaço e, como tal, relaciona-se ao suporte material de que se compõe e aos usos que dele se espera ou podem ajuizar: “[…] o livro não é um objeto natural, mas artificial, material e simbólico”. Muito antes de circular entre nobres, filósofos ou padres da Renascença, no formato encadernado – com direito à lombada, capa, folha de guarda, cola, linha, miolo e quarta-capa – o livro, que se conhece desde meados do século XV, foi rolo de esticar e recolher, depois códice para melhor folhear, carregar, manusear. Ele sucedeu o milenar papiro egípcio e o pergaminho (não por acaso, criado em Pérgamo, bem antes de Cristo); adquiriu a forma rústica “[…] no tempo de Cícero e Varrão”, período em que passou a fazer “parte da vida dos homens instruídos”; e chegou à versão industrializada das folhas de papel, produzidas em série, muito antes da autonomização do(a) autor(a), ao final do século XVIII.

Por ser um bem simbólico, o conteúdo que nele mora necessita ser situado, espacial e temporalmente, por aquele que o lê. Matéria de que se compõe, o livro pode se orientar e respaldar por preceptivas retóricas e regras da poética, fruto de mentalidades diversas e respectivos pressupostos, métodos e fins. Sobretudo, ele “[…] é memória porque é seleção do que culturalmente se julga significativo e lembrável”. Muitos homens autorizados (ou seja, alinhados com a auctoritas, imitando modelos da longa tradição que o antecederam) debruçaram-se sobre o livro, embora discorressem a partir de situações, por vezes, muito distintas. Reconstituir a genealogia desse objeto seria tarefa para numerosos volumes a tratar de um fiel depositário da memória: “Vieira diz no século XVII o que disseram no século XX os alemães teóricos da recepção da leitura, como Jauss, Robert Weinmann e Iser: um livro não tem ação em si mesmo, mas causa grandes efeitos porque é lido, sendo por isso mesmo o somatório sempre inacabado de suas leituras”.

Submetida aos dogmas e arbítrios de homens poderosos (discretos ou vulgares), frequentemente a disseminação da leitura foi interpretada como atividade viciosa e, portanto, censurável. Bastaria mencionar o dia 10 de maio de 1933, quando os nazistas promoveram a enorme queima de livros de teor dito “judaizante”. Ou a “limpeza” moral de materiais perniciosos, realizada durante o reinado de Dom José I (conforme os desígnios do Marquês de Pombal), em meados do Setecentos – segundo procedimentos inquisitoriais que, em Portugal, remontavam ao início do século XVI. A esse respeito, lembre-se que uma das 95 teses de Martinho Lutero, afixadas nas portas das igrejas de Wittenberg, em 1517, defendia o estudo particular da Bíblia pelo fiel:

“O Concílio de Trento decretou a tese herética e proibiu a leitura da Bíblia pelos católicos, para impedir o livre-exame. Isso teve consequências que até os reis aliados do papa, como a Espanha e Portugal, escolheram manter as populações dos reinos e as populações pobres, negras e indígenas das colônias da América analfabetas, e a palavra de Deus foi transmitida oralmente a elas pelo padre iluminado pelo Espírito Santo”.

Seria necessário assinalar que “[…] o intervalo cronológico e semântico do livro em relação ao leitor precisaria ser suprido tendo em vista os elementos condicionantes da época em que o texto originalmente veio a público”. Se até o século XVIII o nome de um letrado ou homem de ciência sobrepujava o título dado à “sua” obra, de lá para a frente, “[…] a coisa se inverteu: a autoria dos livros de ciência se dissolveu na generalidade de um campo em que a iniciativa da pesquisa do cientista individual é somente um elemento hiperespecializado de um conhecimento anônimo”. Vivemos em outro tempo, evidentemente. Uma das características mais peculiares, na relação do livro com o público adepto do mundo ciber, é que, por intermédio do espaço virtual, as obras “[…] estão desierarquizadas nessas mídias como as peças de um joguinho Lego”. Para um internauta de nossos dias, desatento às condições de escritura e protocolos de leitura vigentes em outros tempos, Aristóteles valeria tanto quanto uma resenha sobre um filme de ação, feita de bricolagens.

Outra questão: a vigência dos direitos autorais, ao final do século XVIII, em que o escritor passou a ser tratado como um profissional liberal. Um pino a participar, com variável conhecimento da cortesania e da etiqueta, dos trâmites comercializáveis. Algo muito diferente acontecia na Roma antiga, quando “[…] não havia direitos autorais e era costume o autor pedir a amigos que fizessem modificações nos rolos que possuíam com sua obra”. Isso provocou numerosas diferenças entre as versões (simultâneas ou não) de um mesmo texto. Elas foram detectadas “[…] principalmente nos séculos XV e XVI, quando muitíssimos eruditos das cidades italianas passaram a editá-los e, depois, nos séculos XIX e XX, quando especialistas e filólogos fizeram edições críticas”. Não por acaso, o objeto livro também mudou em formato e propósitos. Atribui-se ao tipógrafo italiano Aldo Manuzio (1449-1515) a redução de tamanho, o que favoreceu o deslocamento da palavra impressa por entre pessoas e acervos, ruas, aposentos, ateliês e salões da corte.

Em O que é um livro?, o professor anuncia abordagem complementar, em que o eixo gravita em torno do objeto livro, mas também leva em conta os papéis e lugares do leitor. Alguém menos experimentado poderá não ver que, até recentemente, a expressão de um autor se ligava ao assunto, em adequação decorosa ao gênero discursivo. Nesse caso, poderá denegar as alusões pretendidas pelo autor, no momento da enunciação. Nesse sentido, caberia estabelecer uma analogia do leitor (que ignora ou desvaloriza os códigos de outro tempo) com a figura do louco, em seu eterno presente “[…] assim como a loucura, que ignora sua própria ficção, a alienação é ignorância […] da particularidade histórica da regra culta e dos poderes da regra”. Por que isso acontece? Porque raramente quem lê leva em conta os preceitos e expedientes utilizados em um texto: “[…] a desconsideração do simbólico corresponde à ignorância do artificial do texto e da sua própria ficção como leitor e caracteriza a leitura inepta e insuficiente como ideologia, etnocentrismo ou universalização da particularidade do seu imaginário de leitor”.

Ao ler, há que se preservar algum distanciamento e estipular parâmetros, conforme o recorte temático e a delimitação histórica, sem perder de vista pelo menos uma parcela dos ingredientes que orientam o que, onde, quando e como o texto foi enunciado, mais ou menos entre a Antiguidade e o final do século XVIII: “[Na hiperinterpretação], o leitor, principalmente o leitor escolar, descobre intenções que o autor quis dizer mas não disse, subordinando projetivamente a informação do texto ao seu imaginário, sem observar que sua interpretação deve ter limites determinados pela regulação retórica do gênero e do regime discursivo do texto”. Haveria que se evitar particularizações excessivas e anacrônicas, frente ao que se escreveu com outras premissas, mediante múltiplos procedimentos e objetivando diversos fins. Afinal, a leitura também tem história – por exemplo, aquela reverberada pela sociedade classista e imitadora canhestra de fidalgos, sedimentada no início do século XIX e atomizada, pelo menos desde 1980, graças ao neoliberalismo. É o que Hansen chama de “leitura besta”, pois “[…] faz falar uma vontade obtusa, cheia de si […], impondo-se à força”:

“Como ler textos do Antigo Regime, como os coloniais, que pressupõem outros conceitos de tempo histórico, poder, pessoa, autoria, texto e público, e não conhecem categorias como ‘literatura’, ‘plágio’, ‘direitos autorais’ e os estilos que os classificam unitariamente nas nossas histórias literárias, Classicismo, Barroco, Neoclassicismo etc.?”.

O que é um livro?, de João Adolfo Hansen, Cotia/São Paulo, Ateliê/Edições do Sesc, 2019, 72 pp.

Ilustremos. O primeiro verso de Os Lusíadas – poema épico com 10 cantos, 1.102 estrofes, 8.616 versos –, escrito por um soldado português entre as décadas de 1550 e 1570 – demandaria uma leitura muito bem aparelhada, sob o risco de o texto modelar (e que imita modelos) ser tratado com despeito ou fastio por alguém que sequer compreendeu aquilo que leu, devido a numerosas limitações: “[…] a expressão ‘armas e barões assinalados’ é uma antecipação, uma síntese prévia da matéria, do gênero e do estilo do poema […] o eventual leitor de Camões deve observar que já no primeiro verso o poema fornece o protocolo de leitura adequada”. Pode-se supor que o livro de João Adolfo Hansen contenha “tom” provocativo, especialmente se atentarmos para a hipótese de que “[…] o leitor tem antes de tudo de suplementar a sua própria insignificância, a sua falta de significação”. Mas isso seria dizer óbvio e pouco. Neste livro sobre os livros, Hansen assume a persona do ensaísta que comove, deleita e ensina – segundo os preceitos de Cícero. Sob esse aspecto, O que é um livro? também pode ser entendido como fala forjada com um misto de sabedoria, coerência e inconformismo. Nada mais conveniente, pois, que este pequeno grande livro inaugure a Coleção Bibliofilia, da Ateliê.

 

 

 


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