O papa, a universidade, os idosos e o dilúvio: dimensões e respostas para conflitos atuais

Por André Francisco Pilon, Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da USP

 15/07/2022 - Publicado há 2 anos
André Francisco Pilon – Foto: ResearchGate GmbH

 

Comparando a época atual com aquela em que Deus decidiu extinguir a humanidade corrompida mediante o diluvio, o papa Francisco lembrou, recentemente, que, naqueles tempos, ainda havia sobre a Terra um homem justo e, por isso, Deus teria reconsiderado sua decisão e ajudou Noé a construir uma arca para salvar a sua criação.

O papa acrescentou também que Noé, por sua avançada idade, teria reunido, aos olhos de Deus, sabedoria suficiente para orientar os que sobreviveriam para trilharem melhores caminhos e, nesse sentido, apelou para as pessoas mais idosas seguirem o exemplo do patriarca e não se omitirem face às catástrofes que o mundo enfrenta hoje em dia.

A questão é que, nos tempos atuais, as pessoas “mais idosas” poderiam ter sido aquelas que, quando eram “menos idosas”, não apenas se omitiram, mas compactuaram, no vigor de seus anos, com o estado de coisas que desencadeou os terríveis “dilúvios” políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais dos tempos que correm.

Quando afastadas das relações de produção e consumo, as pessoas, incluindo as de maior idade, são prontamente descartadas, restando apenas o exemplo de algumas culturas, indígenas ou tradicionais, que valorizam a solidariedade, a prudência e a experiência, razão pela qual os idosos ainda conservam nelas o papel de mentores e guias.

O universo cultural que permeia as relações humanas torna-se evidente em incidente quando de uma consultoria no Paraguai. O carro do funcionário que recepcionou este autor foi abalroado por um caminhão. Enquanto discutiam em espanhol não houve acordo; ao trocaram pelo tupi-guarani (o povo é bilíngue), logo pactuaram em dividir o prejuízo.

Na visão de Vercours (uma das vozes da Resistência francesa), a libertação do homem estaria vinculada ao domínio de sua própria natureza bestial, que o escraviza, e isso estaria ligado à arte, à poesia, à música e à alegria. Para o filósofo Guglielmo Ferrero, o conceito de civilização implicaria na progressiva vitória do homem sobre a condição de medo.

A libertação não seria apenas do medo em si, mas das trevas que o engendra e abastece. Pessoas, comuns ou instruídas, teriam que se dissociar, no mundo todo, dos atuais caminhos insalubres, injustos e insustentáveis. É preciso trazer à tona todos os aspectos (pontos de vista contraditórios, pontos de vista das pessoas com poder).

A questão básica teria que ser tratada face às formas de domínio no mundo atual, que privilegiam poder e riqueza, onde o mundo dos negócios dá as cartas em detrimento de outras formas de existência, especialmente aquelas não comprometidas com a ganância, o lucro e a corrupção, envolvendo tanto pessoas físicas como jurídicas.

As disputas ideológicas mascaram as disputas por hegemonias de todos os tipos, de grupos que empregam todos os meios, legais ou não, para prevalecer sobre outros grupos, que não respeitam valores éticos, tradições, culturas ou territórios, e prontamente corrompem as instituições, em regimes supostamente democráticos ou não.

São questões que transcendem relações de idade, gênero ou raça; estamos todos mergulhados em um universo maior, que nos absorve e conduz, constituído por valores, costumes e sanções (atualmente imbricados em culturas tecnológicas a serviço do mundo financeiro e das corporações de negócios que governam o mundo todo).

A academia, parte do sistema, além de formar profissionais com condições de nele trabalharem com eficiência, deveria prepará-los para serem eficazes face aos desafios atuais, formando-os com visão crítica e competência para que, como pessoas e profissionais, possam atuar de forma responsável como agentes de mudança, na busca de novos caminhos.

Isso implica a conjugação de diferentes áreas de ensino e pesquisa, que se integrariam face ao conjunto curricular, englobando tanto as chamadas ciências exatas e naturais como as ciências humanas, mas, para tanto, todas elas devem ser não apenas consideradas, mas validadas como igualmente importantes para a formação integral.

Tentar integrar partes, enquanto concorrentes, não leva à integração, que depende de um novo patamar conceitual, e pressupõe a não partição do conhecimento, do ensino e da pesquisa; a excelência não será obtida pela aglutinação de partes, pela somatória de esforços isolados, mas pela construção e convergência face a objetivos comuns.

Para efeito de um debate que reunisse áreas que ainda tratam de questões isoladas, seria necessário estimular a discussão de aspectos controversos que envolvam todas elas, como, por exemplo, a ênfase em apenas um determinado tipo de monocultura como carro-chefe da segurança alimentar, face à necessidade de uma dieta balanceada.

Outro foco de convergência abrangeria os efeitos das radiações eletromagnéticas sobre o meio ambiente (face à implantação generalizada de tecnologias vinculadas à chamada inteligência artificial), ou, ainda, as consequências epidemiológicas relacionadas às intervenções dos programas de saúde em diferentes níveis: primário, secundário e terciário.

Vemos assim que, além das intenções, exemplos como esses poderiam consubstanciar ensino, pesquisa e extensão face ao desenvolvimento de políticas públicas, comunicação e advocacia, como fator operante no bojo do caldo efervescente (responsável pelos problemas emergentes), ao invés de tratar apenas das consequências (as bolhas de superfície).

Não seria esse um marco constitucional, teórico e prático, para definir e lidar com questões fundamentais do mundo atual, cujo desenvolvimento (e aprimoramento) seria da maior importância para enfrentar os problemas de difícil solução nos dias que correm, inclusive em relação aos objetivos de uma licenciatura nas universidades?


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