O novo século americano?

Por Pedro Donizete da Costa Júnior, doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 04/10/2021 - Publicado há 2 anos
Pedro Donizete da Costa Júnior – Foto: FFLCH-USP

 

A humilhante saída dos Estados Unidos do Afeganistão, com a retomada dos talibãs ao poder, naquilo que foi a guerra mais longa de sua história, marca a reorientação profunda de seu projeto de política externa dos últimos 20 anos, e aponta para a direção de sua nova rota estratégica internacional para as próximas décadas, a região do Indo-Pacífico e o Sudeste da Ásia, mais especificamente, a China, o que inexoravelmente irá mexer com as estruturas tectônicas do Sistema Interestatal Capitalista.

Projeto para o novo século americano

O Pnac (Projeto para o Novo Século Americano) foi formulado pelos neoconservadores republicanos durante a década de 1990. Longe do poder nessa época e críticos ferrenhos da administração Clinton, tal projeto tinha o objetivo de garantir que o século XXI seria mais um século de primazia norte-americana em todos os aspectos do poder: político, econômico, ideológico e principalmente militar. Nele, estava a base do que posteriormente foi apresentado como “Guerra ao Terror” e “Doutrina Bush”. Conforme a própria definição da organização: “O Projeto para o Novo Século Americano é uma organização educacional dedicada a algumas proposições fundamentais: que a liderança americana é boa tanto para a América e para o mundo e que essa liderança exige força militar, diplomacia enérgica e o compromisso de princípio moral”.

Em síntese, o projeto de expansão do poder americano por todo o sistema internacional já existia antes do 11 de Setembro, ele marca uma reorientação profunda da política externa norte-americana, e lá estavam as bases das “Guerras Intermináveis ao Terror”, na região do Grande Médio Oriente. Tal reorientação perdurou até agosto de 2020, perpassou seis governos, quatro presidentes, dois republicanos e dois democratas, as duas primeiras décadas deste século, entrementes, após distintas promessas malfadas, frustrações evidentes, transformações sísmicas nas relações internacionais, foi finalmente encerrada com o novo governo Biden.

O pivô para o Pacífico

O jovem presidente Barack Obama e seu experiente vice-presidente Joe Biden foram eleitos, em 2008, com a promessa de encerrar as “Guerras Gêmeas” no Iraque e Afeganistão e trazer as tropas estadunidenses de volta para casa.

A administração Obama/Biden tentou girar sua política externa, elaborou o projeto Pacific Pivot, que tinha a intenção de gradativamente “tirar” os EUA da região do “Grande Médio Oriente” e concentrar suas forças no sudeste da Ásia e Pacífico, na contenção de seu competidor estratégico cada vez mais explícito, a China. Todavia, com as dificuldades infindáveis nas “Guerras Intermináveis” no Afeganistão e no Iraque; com a eclosão da Primavera Árabe a partir de 2010; da “Guerra da Líbia” em 2011, a destituição de Muammar Gaddafi e meses depois a deflagração da “Guerra da Síria”; a gênese do grupo terrorista Estado Islâmico, fruto direto das próprias guerras norte-americanas na região, o governo Obama se viu em uma espécie de “areia movediça” naquela região, frustrando seus planos estratégicos iniciais. A maior expressão do fracasso do pivô para o Pacífico pode ser refletida na frustração daquilo que talvez fosse seu plano mais ousado, o TPP (Trans-Pacific Partnership), o tratado de livre comércio dos Estados Unidos com países do Pacífico, que reuniria os EUA e as principais encomias da Ásia e do Pacífico, numa tentativa clara de isolar a China.

Guerra comercial e isolacionismo

Sob a retórica do American First, Donald Trump foi eleito com a mesma promessa de retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão e para encerrar, finalmente, a “Guerra ao Terror”. Mais um retumbante fracasso. Mesmo negociando diretamente com o Talibã e se propondo a uma nova política externa menos intervencionista e belicista, o governo Trump também se afundou no atoleiro do “cemitério dos impérios”, como é conhecido historicamente o Afeganistão.

A política externa de Trump foi marcada por um isolacionismo arrogante. Trump “tirou” os Estados Unidos do mundo. Saiu do Acordo do Clima de Paris e da OMC (Organização Mundial do Comércio). Enfraqueceu as organizações multilaterais, provocando críticas tenazes a instituições cruciais para os interesses dos próprios EUA, como a ONU ou a Otan.

No entanto, foi na administração Trump que se iniciou a nominada “guerra comercial contra a China”. Neste momento, a partir da eleição de Trump, em 2016, já se formou um consenso no Departamento de Estado dos EUA, sejam democratas, sejam republicanos, militares, políticos, congressistas de alto e baixo escalão, secretários de Estado, diplomatas, think tanks, diversas universidades e grupos de pesquisa, intelectuais a serviço do Estado, jornalistas e a mídia em geral, etc… que o grande desafio dos EUA não é mais o “terror” ou “terrorismo”, e sim a China, e que é preciso contê-la imediatamente.

A virada Biden

Por mais humilhante e desastrosa que tenha sido a retirada dos EUA do Afeganistão, agora, finalmente, pela primeira vez em 20 anos, os Estados Unidos podem concentrar suas forças onde realmente interessa, isto é, o Sudeste Asiático, realizar o outrora esboçado pivô para o Pacífico, de onde vem a verdadeira ameaça a sua hegemonia, a China, e assim sepultar de vez o Pnac e a “Guerra ao Terror”, que tanto desgastaram o poder americano neste início de século.

O governo Biden/Harris neste seu primeiro ano está movimentando rápido as peças no tabuleiro do Indo-Pacífico. Em março, ainda nos primeiros cem dias de governo, criou o Quad (Parceria Quadrilateral sobre Segurança entre Estados Unidos, Índia, Austrália e Japão), cujo objetivo explícito é o compromisso de defender a democracia e promover prosperidade na região do Indo-Pacífico, e o tácito, faz parte claramente, da estratégia de contenção da China, na região. No mesmo sentido, neste mês de setembro, os Estados Unidos, em conjunto com Reino Unido e Austrália, formaram o Aukus: uma aliança de cooperação tecnológica e militar, que analogamente tem o indisfarçável escopo, ainda que não diretamente declarado, de conter a expansão da China na região do Indo-Pacífico.

Neste momento, é preciso aguardar, de um lado, a resposta de Pequim, sempre muito cautelosa aos avanços e provocações do “Ocidente”, contudo, inexorável em defender seus interesses estratégicos, como, por exemplo, o mar do Sul da China, Hong Kong ou Taiwan. E de outro, como continuará a “ofensiva Biden” e sua “nova marcha para o Oeste” na região do Indo-Pacífico e no cerco ao seu grande desafio estratégico, neste século XXI.


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