O legado de Otavio Frias Filho para o jornalismo

Carlos Eduardo Lins da Silva é professor do Instituto de Relações Internacionais e colunista da Rádio USP

 24/08/2018 - Publicado há 6 anos

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Carlos Eduardo Lins da Silva – Foto: Maria Leonor Calasans / IEA

Um dos meus últimos contatos com Otavio Frias Filho foi devido ao dossiê Pós-verdade e jornalismo, que a Revista USP publicou em seu número 116. Eu colaborei com o seu editor-chefe, Francisco Costa, na pauta e no pedido de artigos a colaboradores, entre eles Otavio.

O fechamento se deu às vésperas de uma cirurgia a que ele se submeteu. Apesar do óbvio estresse por que estava passando, ele entregou no prazo e no tamanho combinados seu texto, iluminador como foi quase tudo aquilo que escreveu.

Esta é uma das características mais marcantes da personalidade de Otavio, que resultaram dos 41 anos em que convivemos: sempre cumpria sua palavra, nunca se atrasava em compromissos profissionais.

A morte de Otavio impõe a seus sucessores na Folha de S. Paulo e no jornalismo brasileiro o enorme desafio de manter o padrão de independência, apartidarismo, pluralismo e espírito crítico que ele foi capaz de implantar no seu jornal.

O jornalismo como espaço do saudável embate de ideias é vital para a democracia. Otavio tinha certeza disso e sabia como era difícil manter esse padrão. Mas sobre isso muitos já escreveram nestes tristes dias de agosto, inclusive eu mesmo.

Aqui, gostaria de ressaltar outro aspecto do trabalho de Otavio não muito mencionado: o da relação do jornal com a universidade.

Otavio, como se sabe, não era formado em jornalismo, mas sim em direito. E era contrário à obrigatoriedade do diploma de graduação em jornalismo para exercer a profissão.

A convicção de que qualquer pessoa inteligente, culta, com clareza de raciocínio e capacidade de escrever bem poderia trabalhar em redações com sucesso lhe rendeu muita hostilidade na fase inicial do Projeto Folha, em 1984, quando ele resolveu contratar diversos não graduados em jornalismo para trabalhar na Folha. Ele mesmo foi acionado pelo sindicato.

Mas isso não significava que não achasse importante a formação acadêmica para jornalistas. Ele estimulou um diálogo ativo entre a redação e diversas faculdades de jornalismo. Raramente se recusava a participar de seminários e simpósios em escolas de comunicação.

Instituiu uma cátedra de jornalismo da Folha na ECA-USP nos anos 1980, da qual o primeiro ocupante foi Claudio Abramo. Depois, no início deste século, inaugurou a cátedra Octavio Frias de Oliveira na FIAM.

Na própria Folha, criou-se uma cultura de aprendizado interno e para interessados em trabalhar no jornal por meio de um programa de treinamento que ajudou a formar alguns dos melhores jornalistas em atuação atualmente no País.

O jornalismo como espaço do saudável embate de ideias é vital para a democracia.

Metódico por natureza, Otavio considerava o uso do método científico um dos grandes instrumentos para a obtenção de conhecimento e achava que era preciso adaptá-lo para a prática do ofício de jornalismo.

Ele ensinou aos editores e repórteres da Folha que uma pauta devia ser feita como se faz um projeto de pesquisa: com hipóteses a serem testadas por meio de metodologia consagrada para serem comprovadas ou desmentidas pela realidade.

Este foi um dos principais motores do sucesso que a Folha teve sob seu comando. Era um dos motivadores da busca incessante da exatidão na apuração e na elaboração dos textos que seriam publicados e da ambição da imparcialidade na abordagem editorial.

Foi também a crença na ciência que o levava a procurar e adotar as mais novas tecnologias e a tentar alcançar máxima eficiência administrativa nos assuntos da redação, na contramão das práticas da atividade no passado, baseadas mais em romantismo e idealismo.

Não que lhe faltassem essas qualidades (romantismo e idealismo) em relação aos objetivos do seu trabalho e em sua vida privada. Mas Otavio se convenceu de que só com uma abordagem mais racional e científica seria possível atingir bem a esses objetivos.

Ele também estava mais do que ciente de que uma cultura dessas não se enraíza numa redação apenas por meio de exortações e documentos escritos. Por isso, cobrava diariamente nos mínimos detalhes o cumprimento das tarefas, que deveriam ser realizadas com máxima exatidão.

Este é um trabalho estafante, que exige perseverança e força de vontade. Espero que os que substituírem Otavio as tenham como ele, para que seu legado para o jornalismo não venha a ser desperdiçado.

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