O homem da pirâmide

Hugo Segawa é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP)

 05/06/2019 - Publicado há 5 anos
Hugo Segawa – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
É provável que muita gente, em qualquer parte do mundo, tenha visto uma imagem da pirâmide do Louvre. Mas certamente poucos saberão do vínculo desse ícone parisiense com o arquiteto sino-americano Ieoh Ming Pei. Festejado com seu prenome abreviado, I. M. Pei agora compareceu na grande mídia internacional com a notícia de seu falecimento em 16 de maio passado, aos 102 anos, em Nova York.

As chamadas na imprensa quase inevitavelmente o relacionavam ao Louvre. Os noticiários norte-americanos o intitulam “famoso arquiteto”; com mais amplitude, foi identificado como “venerado arquiteto por trás de museus icônicos”, ou “mestre cujos edifícios assombraram o mundo”. Julgo que a mais significativa chamada foi: “Aos 102, o arquiteto visionário I. M. Pei conheceu controvérsia – e vingança.”

Conta-se que foi uma decisão soberana de François Mitterrand convidar I. M. Pei para intervir no Museu do Louvre, impressionado que estava o presidente francês com o anexo da National Gallery of Art de Washington. Quando Pei apresentou sua proposta, na qual a pirâmide era apenas uma parte da reorganização espacial do museu (sem trocadilho, a “ponta do iceberg” de uma bem elaborada proposta), o poliedro de cristal incomodou profundamente o establishment cultural francês. Talvez os termos mais leves que o diário parisiense Le Figaro dedicou ao projeto foi “megalomaníaco” e “atroz”, ao iniciar uma feroz campanha. Os anos Mitterrand (1981-1995), que a professora Otília Arantes registrou, como testemunho de época, no capítulo “Os dois lados da arquitetura francesa pós-Beaubourg”,[1] confundem-se como marco inaugural de um fenômeno do último quartel do século passado: a espetacularização das cidades.

Frente à acusação de desfigurar um monumento histórico, não foram os argumentos de Pei que possibilitaram a inauguração em 1989 da nova entrada do Louvre. Não fosse a teimosia imperial de Mitterrand, Paris estaria privada de um de seus maiores ícones turísticos. A pirâmide de Pei foi tão achacada quanto a torre de Gustave Eiffel, no século 19, condenadas por preservacionistas e intelectuais. A inusitada e contemporânea solução de um objeto cristalino – soberbo na presença e na alta tecnologia de sua execução – chocou algumas vigências dos especialistas em preservação e restauro, e estabeleceu para os arquitetos um novo cânone de intervenção sobre bens patrimoniais – para o bem e para o mal. Esses antecedentes são uma amostra do que aguardamos a respeito da reconstrução da cobertura e pináculo da catedral de Notre Dame.

O fato é que a intervenção de I. M. Pei é hoje uma unanimidade que inunda o Instagram; um vórtice visual que eclipsa os edifícios construídos entre os séculos 17 ao 19, tornando-os monumentais molduras do teto de vidro da entrada principal do museu. Tamanho não é documento: a pirâmide e a Mona Lisa são os símbolos do Louvre. I. M. Pei, com sua criatividade, estava vingado.

O Morton H. Mayerson Symphony Center, sede da Orquestra Sinfônica de Dallas, foi inaugurado em 1989, no mesmo ano da remodelação do Louvre – o que coincidiu para amplificar o prestígio da arquitetura de I. M. Pei. Era a principal presença monumental no Dallas Art District, uma versão texana do Lincoln Center de Nova York. Visitando-o há dez anos, o que pude colher é que, ao seu lado o arquiteto britânico Norman Foster projetou uma ainda maior casa de ópera, inaugurada em 2009; a algumas centenas de metros também está o mais modesto teatro experimental do arquiteto holandês Rem Koolhaas, também de 2009 – ambos do star system arquitetônico mundial, como I. M. Pei. Mesmo sendo uma das maiores salas de concerto nos Estados Unidos, seus vizinhos eclipsaram a sua sinfônica.

A página web do Prêmio Pritkzer de Arquitetura é bastante lacônica acerca do laureado de 1983: “a arquitetura de Ieoh Ming Pei pode ser caracterizada por sua fé no modernismo, humanizado por sua sutileza, lirismo e beleza”

Visitar a East Wing da National Art Gallery de Washington ainda é uma experiência extraordinária. Nesse edifício estão algumas marcas que caracterizam a obra de I. M. Pei: operoso em geometrias triangulares e trapezoidais nas plantas e nas arestas que resultam um monumentalismo contido, atemporal, impecável na técnica, na estrutura, no acabamento. Uma área de ingresso impressionante (lição que prossegue no Louvre) e uma obra teimosamente tardo-moderna inaugurada em 1978, na efervescência do pós-moderno na arquitetura.

A página web do Prêmio Pritkzer de Arquitetura é bastante lacônica acerca do laureado de 1983: “a arquitetura de Ieoh Ming Pei pode ser caracterizada por sua fé no modernismo, humanizado por sua sutileza, lirismo e beleza”. E passa a listar suas principais obras, que não são poucas. Pei não se notabilizou como um paradigma da arquitetura moderna, mas é um de seus mais bem qualificados e bem-sucedidos cultores, no limiar entre o pragmatismo e a alta cultura arquitetônica. É difícil distinguir, ao longo de mais de sessenta anos de exercício profissional, o I. M. Pei arquiteto-criador, e a persona que representou um escritório que chegou a contar com cerca de 300 profissionais, diluindo a autoria do projeto na complexidade da produção de arquitetura e urbanismo.

Nascido em 1917, filho da elite de Guangzhou, I. M. Pei saiu de seu país natal com 18 anos e  se graduou em Harvard em 1946, aluno do mestre da Bauhaus Walter Gropius. Iniciou sua carreira em Nova York trabalhando para um escritório dedicado ao setor imobiliário, projetando grandes edifícios, que o credenciaram a abrir o seu próprio. Mas sua ambição não se limitou ao mundo corporativo. Julgo que a melhor definição do profissional Pei é de Paul Goldberger: “Era um dos poucos arquitetos igualmente atraentes para incorporadores imobiliários, grandes empresários e conselhos de museus de arte (o terceiro grupo, é claro, muitas vezes composto de membros dos dois primeiros). E todo o seu trabalho – dos seus arranha-céus comerciais aos seus museus de arte – representou um cuidadoso equilíbrio entre a vanguarda e o conservadorismo”.[2]

Uma das obras que impulsionou o prestígio de I. M. Pei foi a John F. Kennedy Presidential Library and Museum, em Boston. É uma quase-lenda que Jacqueline Kennedy, ao visitar o escritório de Pei em 1964, encantou-se com a erudição e a maneira elegante do arquiteto e o escolheu na hora para realizar o projeto.[3] Nas falas que afloram com sua morte, um dos engenheiros próximos ao escritório revela que “Pei aprendeu o que pôde sobre Jacqueline Kennedy, que faria a escolha. Para sua visita, ele refez o escritório, cada detalhe no lugar, até colocar flores que ele sabia que ela gostava na área da recepção”.[4]

De outra maneira, vale o depoimento da arquiteta Billie Tsien, do hoje aclamado escritório nova-iorquino que mantém com o marido, Tod Williams: “Ele era um cavalheiro incrível e muito generoso conosco, apesar de não nos conhecer bem. Ele foi convidado para projetar uma biblioteca asiática na Universidade da Califórnia em Berkeley, e ele nos indicou para o projeto.”[5]

É uma obra que vale visitar. Não só pela qualidade da dupla Williams/Tsien, mas pelo olhar de I. M. Pei para as novas gerações.

Edifício Fountain Place em Dallas, Texas, 1986 – Foto: drumguy8800 via Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0

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Sede da Sinfônica de Dallas, Texas, 1989 – Foto: Arquivo pessoal / Hugo Segawa

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Museu de Arte Islâmica, em Doha, Catar – Foto: Shahin Olakara / Wikimedia Commons – CC

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[1] ARANTES, Otília. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Studio Nobel; Edusp; Fapesp, 1993, p. 157-214.

[2] GOLDBERGER, Paul. I.M. Pei, “Master Architect whose buildings dazzled the world, dies at 102”. The New York Times, May 16, 2019. Disponível em <https://www.nytimes.com/2019/05/16/obituaries/im-pei-dead.html>. Acesso em: 28 maio 2019.

[3] Idem.

[4] RUSSELL, James S. “In their words: remembering I. M. Pei”. The New York Times, 18 maio 2019. Disponível em <https://www.nytimes.com/2019/05/18/arts/design/im-pei-architecture.html?module=inline>. Acesso em: 28 maio 2019.

[5] Idem.


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