O daguerreótipo nos trópicos

Boris Kossoy é fotógrafo, pesquisador e professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP)

 29/03/2019 - Publicado há 5 anos

Boris Kossoy – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

A fotografia nasce num momento especial, econômico, social e cultural, momento de efervescência da ciência e da técnica, fortemente impulsionadas no contexto da Revolução Industrial. Uma época em que se desenvolvem maquinismos de toda espécie como o caminho de ferro e o navio a vapor; a fotografia é uma dessas descobertas que surgem num momento oportuno para ser aceita e assimilada pela sociedade dos grandes centros europeus.

Com o advento da fotografia, inaugurava-se a era das imagens técnicas; sua rápida absorção social viabilizou os sucessivos aperfeiçoamentos técnicos de que foi objeto em seus primeiros tempos, antes de sua efetiva industrialização. Pode-se hoje avaliar o papel decisivo que exerceu enquanto meio de expressão e instrumento de conhecimento.

A chegada do daguerreótipo aos trópicos

Comemora-se justamente neste ano de 2019, o 180º aniversário do anúncio da descoberta da daguerreotipia, o primeiro sistema fotográfico a ser colocado em uso. O daguerreótipo, processo inventado por Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), consistia em uma placa de cobre ou estanho amalgamada a uma fina lâmina de prata cuja superfície, extremamente polida, lembrava um espelho. O daguerreótipo foi muito apreciado: era uma peça única que não possibilitava cópias, característica que associava o artefato à ideia do retrato pintado convencional; apresentava-se em chapas de diferentes formatos e era montado em sofisticados estojos ornados com veludo e passe-partouts dourados, assemelhando-se o conjunto a uma verdadeira joia. Nesse aspecto, vinha de encontro aos padrões de gosto da elite da época.

A fotografia, ou melhor, a daguerreotipia faz sua estreia oficial no Brasil em 1840, no mesmo ano em que foi declarada a maioridade de D. Pedro II (1825-1891). Na realidade tratou-se de uma estreia europeia conduzida pelo Abade Compte, que cruzava o mundo a bordo do navio-escola L’Orientale. O abade trazia em sua bagagem um equipamento completo de daguerreotipia e realizou as primeiras demonstrações do recém-inventado método no Rio de Janeiro. O jovem monarca com 14 anos, fascinado pelo que viu, solicitou a compra de equipamentos de daguerreotipia, tornando-se ele mesmo, possivelmente, o primeiro fotógrafo amador do Brasil.

Diante de tais prioridades é importante sublinhar que as vistas do Largo do Paço realizadas pelo Abade Compte no dia 16 de janeiro de 1840 se tratam dos primeiros daguerreótipos obtidos na América do Sul. No entanto, existem aspectos ainda controvertidos em termos de datação e autoria, além de detalhes técnicos que cercam a produção desses artefatos, assim como o de uma outra conhecida imagem do Largo devida ao norte-americano Augustus Morand em 1842, onde se vê o palácio, a guarda imperial, populares e as edificações ao redor. Sobre o tema especificamente, veja-se o artigo “O mistério dos daguerreótipos do Largo do Paço“, recém-publicado na Revista USP (n. 120, janeiro-março, 2019, pp.127-152).

L. Compte, Vista Parcial do Mercado da Praia do Peixe, Rio de Janeiro, 16/1/1840, daguerreótipo – Arquivo Grão Pará, Petrópolis, RJ

A descoberta isolada da fotografia no Brasil

Não podemos deixar de ressaltar, desde logo, um fato relevante que antecede de alguns anos a chegada da daguerreotipia ao Brasil. Mal sabiam os brasileiros, e muito menos os europeus, que experiências fotoquímicas pioneiras realizadas nas Américas tinham ocorrido no interior da Província de São Paulo, na então Vila de São Carlos (mais tarde, Campinas), a partir de 1833. Foi autor dessa proeza o francês de Nice, Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879).

Embora Florence estivesse fascinado com a possibilidade de registrar as imagens do mundo exterior pela camera obscura, desvia o curso dessas investigações e aplica suas recentes descobertas fotoquímicas num método alternativo de reprodução de exemplares pela ação da luz.

A lacuna existente no tocante às possibilidades de impressão em seu meio motivam-no a direcionar suas pesquisas à exploração da natureza própria da fotografia, aplicando-a às artes gráficas visando à obtenção seriada de cópias de desenhos e escritos, a partir de uma matriz. Anos antes de ser anunciada a descoberta de Daguerre, Florence já fazia uso prático de seu processo fotográfico para a obtenção em série de “impressos” vários, como diplomas maçônicos, rótulos para produtos farmacêuticos e etiquetas para outras atividades do comércio, evidência do espírito europeu do seu tempo, associando o conceito de arte e indústria.

A descoberta de Florence não encontrou eco no meio atrasado e escravocrata em que viveu, passou despercebida e caiu no obscurantismo por cerca de 140 anos[1].  Prevaleceu assim, no Brasil, a fotografia importada da Europa.

L. Compte, Chafariz do Largo Paço, Rio de Janeiro, 16/1/1840, daguerreótipo – Arquivo Grão Pará. Petrópolis, RJ

  

O triunfo do retrato fotográfico

Uma nova era na história da representação foi inaugurada no momento em que a daguerreotipia tornou-se tecnicamente viável para ser aplicada ao retrato. A potencialidade do retrato fotográfico como objeto de consumo foi rapidamente percebida pelos pioneiros fotógrafos desde os tempos da daguerreotipia e, este, foi um fenômeno que podemos detectar em todas as partes ao longo da história da fotografia. Pode-se dizer que, desde o início, a fotografia foi praticada com fins comerciais; sua expansão confunde-se, portanto, com o processo de expansão de uma atividade comercial.

As classes médias na Europa, em especial na França, como demonstrou Gisele Freund em seu clássico La fotografia como documento social [2], constituíram a clientela massiva dos estúdios fotográficos desde o primeiro momento. No Brasil, o retrato pelo daguerreótipo encontraria, nas décadas de 1840 e 1850, uma clientela ainda bastante modesta se comparada aos mercados existentes para essa inovação nos Estados Unidos e na Europa na mesma época.

Este consumo era principalmente localizado em algumas capitais da costa brasileira, em especial no Rio de Janeiro, capital do Império. Os daguerreotipistas permaneciam, em geral, pouco tempo em cada local, sendo muitos deles itinerantes. Eram estrangeiros na sua maioria, e seu número reduzido, proporcional ao pequeno grupo social desejoso de representação: uma classe de nobres, produtores rurais e comerciantes abastados.

Duas décadas depois coincidiria o declínio da daguerreotipia com o triunfo do sistema negativo-positivo, sendo o processo introduzido pelo inglês Fox Talbot, o calótipo, o fundamento a partir do qual se desenvolveu e se expandiu a fotografia moderna em todo o mundo. Novos tempos, novas tecnologias fotográficas. Nesta altura assiste-se no Brasil a um gradativo progresso econômico e ao surgimento de uma classe média urbana nas principais cidades do país; o mercado para o ofício fotográfico amplia-se notavelmente, o retrato já não era mais privilégio dos mais ricos, democratizava-se a imagem do homem através da fotografia.

 

[1] Sobre o tema ver do autor, Hercule Florence, a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil, 3ed., São Paulo: Edusp, 2006.

[2] Barcelona: Gustavo Gili, 1976.


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