O custo da pandemia sobre a saúde mental de crianças e adolescentes

Por Guilherme V. Polanczyk, professor associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

 11/05/2020 - Publicado há 4 anos
Guilherme V. Polanczyk – Foto: Arquivo pessoal via Focus/TDAH

 

Crianças e adolescentes não são o foco de maior preocupação no contexto da pandemia que vivemos. Embora sejam igualmente infectados, apresentam manifestações clínicas mais brandas do que adultos e idosos. Entretanto, o impacto da pandemia sobre a sua saúde mental deverá ser da mesma magnitude, talvez maior. A expectativa é que as consequências do isolamento social, da ameaça contra a vida e das perdas econômicas sobre a saúde mental da população – inclusive de crianças e adolescentes – representem uma “segunda onda” da pandemia, com enormes custos sociais.

Mas por que devemos nos preocupar com a saúde mental de crianças e adolescentes hoje, em meio ao perigo real do vírus e a tantos prejuízos sobre a economia global ainda não definidos? Os transtornos que surgem na infância e adolescência são altamente relevantes para a sociedade porque afetam indivíduos normalmente saudáveis em plena fase produtiva e de desenvolvimento, com prejuízos cumulativos até a idade adulta. Levam muitas vezes à incapacidade e mesmo à morte, figurando dessa forma entre as principais causas de carga de doença na população. O surgimento de transtornos mentais, que ocorre mais frequentemente naquelas crianças mais vulneráveis, propaga e perpetua as desigualdades sociais já existentes. Ao antecipar as consequências da pandemia sobre a saúde mental de crianças, e entendendo como os transtornos mentais se instalam, podemos preveni-los.

O estresse emocional é um dos mais importantes fatores de risco preveníveis para os transtornos mentais. Os transtornos que surgem a partir do estresse podem ocorrer já na infância ou mesmo anos após a ocorrência da situação estressora. A atual pandemia e todo o contexto que a acompanha chegam aos cérebros das crianças por meio de informações, por meio de emoções de seus pais e outros adultos significativos, pelas mudanças da rotina e do ambiente ao longo do tempo. O cérebro de cada criança é diferente e reconhecerá os dados recebidos de formas particulares. Surgirão pensamentos e emoções como sinais de estresse, que serão transmitidos de forma direta (expressando medo, insegurança) ou indireta (irritação, insônia). Os pais, que são protagonistas no desenvolvimento dos seus filhos, poderão reconhecer os sinais de estresse, processá-los e retransmitir às crianças respostas que geram acolhimento, segurança e aprendizado, estabelecendo um ciclo positivo. Entretanto, os pais podem não reconhecer os sinais de estresse de seus filhos, ou podem reconhecer mas não responder, ou ainda podem transmitir respostas que geram mais medo, insegurança e desamparo, estabelecendo um ciclo negativo.

Todas as crianças e adolescentes neste momento se deparam com situações que geram sofrimento. A limitação de não poder ir e vir, a restrição de espaço, não poder encontrar ou abraçar seus avós, não poder encontrar seus amigos, ter festas, viagens e campeonatos cancelados, o medo de ser infectado ou de ter seus familiares infectados, a interrupção do ensino presencial, a percepção de que seus pais estão ansiosos, preocupados, irritados, as brigas, são todas situações que geram estresse no momento.

Ainda não é possível estimar a magnitude das mudanças sociais, do impacto econômico, do número de infectados e mortos, do tempo de distanciamento social ou mesmo lockdown, que, juntos, determinarão o estresse a que estarão expostas. As imagens de escolas na China agora reabertas, em que crianças de cinco anos usam uma espécie de hélice em suas cabeças para garantir uma distância mínima entre elas, ou de crianças de nove anos vestindo capacetes com protetor facial de plástico, bem como as estimativas de perdas econômicas futuras, dão uma ideia de que o estresse não terminará com o fim do distanciamento social e com a abertura de escolas.

Há ainda grupos de crianças e adolescentes que estão sendo particularmente afetados pela pandemia. São aqueles com fragilidades prévias: aqueles que já apresentam transtornos mentais, deficiências ou outros problemas de saúde, que vivem em pobreza, em situações de moradia precária, aqueles isolados socialmente. Crianças cujos pais apresentam problemas emocionais que os tornam menos competentes em processar o sofrimento dos seus filhos ou mesmo que expõem os filhos a situações de estresse adicionais, como situações geradas por abuso de substâncias ou violência intrafamiliar, também são especialmente mais vulneráveis. Ainda, aquelas crianças mais intensamente atingidas pela pandemia, como filhos de profissionais da saúde que estão afastados e vivem com a ameaça constante da infecção, crianças cujos familiares foram infectados e ficaram gravemente acometidos ou faleceram, ou cujos pais ficaram desempregados ou sofreram perdas econômicas importantes e desenvolvem ansiedade, depressão, uso de álcool, eventualmente levando ao suicídio.

Quando os estímulos que chegam ao cérebro da criança não são tão intensos, quando a criança tem um cérebro que processa adequadamente esses estímulos, e quando o estresse resultante é processado pelos pais e retransmitido de forma que gere aprendizado, provavelmente haverá o fortalecimento emocional dessa criança, um processo chamado de resiliência. No entanto, quando os estímulos que chegam ao cérebro das crianças são devastadores, quando o cérebro da criança não os processa adequadamente, ou quando os pais amplificam o estresse, haverá o que se chama de estresse tóxico e aí problemas emocionais ou comportamentais ou mesmo transtornos mentais podem se instalar.

Para prevenir os transtornos mentais no contexto atual, é preciso atenuar as adversidades, acionar sistemas sociais de suporte, identificar precocemente os primeiros problemas e agir sobre eles, evitando que piorem.

Como atenuar as adversidades que decorrem da pandemia? Pais devem ser sensíveis ao estresse vivenciado pelos seus filhos e acolher, confortar, transmitir segurança, e ensinar aos filhos que é possível aprender com as adversidades. É possível olhar para ela de diferentes ângulos, buscando algum positivo. Por exemplo, a ocorrência da atual pandemia poderá servir de alerta à comunidade global para o risco de outras pandemias e, dessa forma, evitar que uma ainda mais letal ocorra. Pode não haver um ângulo positivo quando, por exemplo, um familiar querido morre, ou quando a renda desaparece. Nesses momentos, o melhor a fazer é aceitar. Aceitar que adversidades ocorrem e que não é possível controlar a vida. Aceitação é um processo difícil, especialmente para as crianças, mas que pode ter grandes efeitos positivos na redução de ansiedade. Algumas habilidades das crianças parecem facilitar o processo de lidar com as adversidades: crianças mais flexíveis, que se adaptam ao ambiente com mais facilidade, que têm maior capacidade de regular suas emoções, que têm amigos.

Mas, para ensinar aos filhos que é possível aprender com as adversidades, os pais precisam estar relativamente saudáveis. Não é possível estar totalmente saudável neste momento, mas espera-se que os pais tenham aprendido com os seus próprios pais, ou de outras formas ao longo da vida, a eles próprios lidar com as adversidades. Muitos pais não terão essa capacidade, seja porque apresentam transtornos mentais ou porque estão sofrendo os efeitos agudos da pandemia.

Um estudo conduzido pela Kaiser Family Foundation nos EUA no final do mês de março mostrou que 46% de adultos pais de crianças e adolescentes menores de 18 anos de idade sentem que a pandemia tem um impacto negativo sobre a sua saúde mental. Os números devem ser maiores depois de mais de um mês de distanciamento social. Estes adultos precisarão do apoio dos familiares, da escola de seus filhos, acesso aos seus próprios tratamentos. Apoio por meio virtual ou, quando a urgência não permitir, presencial. Precisarão também do auxílio financeiro do Estado.

Não será possível atenuar os efeitos da pandemia sobre muitas crianças e adolescentes, que irão desenvolver sintomas emocionais e comportamentais. Ansiedade, irritabilidade, tristeza, insônia, agitação, desesperança serão alguns deles. Nessas situações, será fundamental a identificação precoce. Crianças em maior risco devem ser monitoradas pela família, professores, profissionais da saúde. Programas de saúde devem ser constituídos para identificar crianças de risco e oferecer aconselhamento.

Quando os transtornos mentais estiverem instalados, tratamentos adequados devem estar disponíveis. O distanciamento social é uma grande barreira para isso, mas estratégias implementadas através da internet e hoje regulamentadas no Brasil (como teleatendimento e uso de aplicativos) alcançam facilmente as crianças e adolescentes. Nessa direção, foi criado em Nova York um serviço de atendimento de suporte em crise realizado através do telefone que conta com mais de 8 mil profissionais de saúde mental para atender a população do estado, incluindo deficientes auditivos e aqueles que não falam inglês. Iniciativas como essa estão disponíveis no Brasil para profissionais da saúde, como o TelePsico Covid-19 oferecido pelo Ministério da Saúde e o COMVC19 do Hospital das Clínicas da USP.

Não é possível estimar o custo que a atual pandemia terá sobre a comunidade global. O que é certo é que eventualmente a imunidade de rebanho será alcançada, a economia se reconstituirá, mas as marcas sobre a saúde mental da geração atual de crianças e adolescentes permanecerão. Temos de começar a trabalhar já para atenuá-las, transformar risco para doença em oportunidade para desenvolvimento e garantir que uma “segunda onda” da pandemia relacionada a transtornos mentais seja prevenida.

 

 


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