O Ato Institucional nº 5 e seu significado histórico

Elival da Silva Ramos é prof. titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e superintendente jurídico da Reitoria da USP

 12/12/2018 - Publicado há 5 anos

Página 01 do Ato Institucional Número Cinco (AI-5). Fundo: Gabinete Civil da Presidência da República – Foto: Reprodução / Arquivo Nacional via Wikimedia Commons / Domínio público

Elival da Silva Ramos – Foto: Ricardo D’Angelo

Há 50 anos, no dia 13 de dezembro de 1968, o general Artur da Costa e Silva, 2º presidente da República do regime autoritário implantado em 31 de março de 1964, após ouvir o Conselho de Segurança Nacional, editou o Ato Institucional nº 5, que representou importante inflexão nos rumos traçados pelo governo anterior, comandado pelo marechal Castelo Branco.

Não cabe aqui a discussão acerca do nível de apoio popular à quebra da ordem constitucional ocorrida em 64. O que é certo, pois se trata de um dado objetivo, é que os governos militares pós-64 foram oriundos da quebra da ordem constitucional estabelecida com a redemocratização do País em 1946, consubstanciada na deposição, pela força, do presidente João Goulart, que assumiu segundo os ditames da Constituição de 1946.

É certo que legalidade e legitimidade não se confundem. Porém, sem a estabilidade institucional que somente o Estado de Direito propicia e afastados os mecanismos, mais ou menos precisos, da representação política, é muito difícil aferir a legitimidade de todo e qualquer governo, medida em termos de consenso social.

Comício na Central do Brasil, Rio de Janeiro, em 1964 – Foto: Fundo Correio da Manhã / Arquivo Nacional via Wikimedia Commons / Domínio público

O governo Castelo Branco sabia o custo que representava a quebra da legalidade e da institucionalidade. Ainda que de forma acentuadamente autoritária (com a depuração do Congresso Constituinte, via cassação de mandatos), uma nova Constituição foi promulgada em 24 de janeiro de 1967, com o que se pretendia sinalizar para o retorno ao Estado de Direito, até então não assegurado por uma Constituição de perfil social-democrático, continuamente desafiada por atos institucionais e complementares editados pela Presidência da República do regime militar.

Algumas dificuldades próprias do processo político então vivido amplificaram a insegurança própria de um regime deficitário, em termos democráticos, desde sua origem, bastando a gota d’água da falta de autorização da Câmara dos Deputados para que o deputado federal Márcio Moreira Alves fosse processado perante o Supremo Tribunal Federal, para que um cenário de autêntica ofensiva “contrarrevolucionária” fosse artificialmente construído, servindo de justificativa expressa para a edição do Ato Institucional nº 5.
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O Ato Institucional nº 5 foi o mais agressivo e autoritário ato normativo de toda a sequência de atos institucionais produzidos pelo regime militar.

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A rigor este deveria ter sido o Ato Institucional nº 1, pois a série iniciada anteriormente à Constituição de 67 teve um fim com a sua entrada em vigor. De todo modo, essa continuidade numérica é significativa sob o prisma político, porquanto revela a visão de que o regime militar autoritário, infenso aos azares do processo político democrático assentado no pluralismo de ideias, houvera continuado, a despeito da constitucionalização epidérmica ocorrida em 1967.

Valho-me, neste ponto, de categorias magistralmente utilizadas por Oliveiros S. Ferreira, ao se referir ao “partido fardado”, “a vertente política e intelectual das Forças Armadas, mais ágil e aberta para interagir com a sociedade e, em momentos críticos, liderar a insatisfação social em nome de um projeto nacional”, em contraposição ao “estabelecimento militar”, “mais insulado, burocrático, zeloso de regimentos e hierarquias” (Elos Partidos: Uma nova visão do poder militar no Brasil, São Paulo, Harbra, 2007).

Costa e Silva – Foto: Governo do Brasil – Galeria de Presidentes via Wikimedia Commons / Domínio público

Eram os representantes do “partido fardado” que triunfavam sobre os militares de perfil técnico-burocrático, devidamente estimulados por civis “sedentos” da continuidade de um regime que ideologicamente apoiavam e do qual, de algum modo, se beneficiavam.

O Ato Institucional nº 5 foi o mais agressivo e autoritário ato normativo de toda a sequência de atos institucionais produzidos pelo regime militar, em paralelo à ordem constitucional, que assumiu ares de um constitucionalismo semântico, na expressão de Karl Loewenstein (Constituição disfarce).

Por meio dele, o presidente da República se autoproclamou um déspota com poderes ilimitados, podendo, ao seu alvedrio: decretar o recesso de todos os Parlamentos da Federação (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores), assumindo o Poder Executivo, plenamente, funções legislativas; decretar a intervenção em Estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição; suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos federais, estaduais e municipais; decretar o estado de sítio, fixando o prazo de sua duração; após mera investigação administrativa, decretar o confisco de bens por enriquecimento ilícito no exercício de cargo ou função pública.

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Além disso, com a edição do AI-5, foram suspensas, sem prazo determinado, as garantias da magistratura e a estabilidade dos funcionários públicos, bem como a garantia constitucional do habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

A bem de ver, nenhuma dessas prescrições era necessária. Bastava uma, contida no artigo 11 do AI-5: foram excluídas de apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com o AI-5 e respectivos atos complementares! Ou seja, se algum abuso ou irregularidade fossem detectados na própria aplicação daquele ato institucional, não haveria medida judicial para socorrer os afetados pelo arbítrio presidencial.
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Que seja sempre lembrado e jamais reeditado, sob nenhuma forma ou a nenhum pretexto!

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A cruzada fundamentalista que o regime militar pretendeu travar contra o radicalismo político à esquerda e a corrupção, fundada em um instrumento normativo despótico, logo cobrou o seu preço. De início, o vice-presidente Pedro Aleixo (um civil) foi impedido de assumir a Presidência, vaga pela morte do general Costa e Silva, e a Junta Militar que usurpou o poder promulgou a Emenda nº 1, de 1969, à Constituição de 67, que deve ser considerada uma nova Constituição, gestada nas entranhas do autoritarismo. Na senda desses eventos paradigmáticos, lideranças políticas promissoras tiveram sua carreira política interrompida por cassação de mandato ou suspensão de direitos políticos; acuados, os Parlamentos federativos deixaram de exercer o controle político que lhes é inerente; sem a garantia do habeas corpus, remédio constitucional que deita suas raízes na Magna Carta de 1215, prisões arbitrárias se multiplicaram; prisioneiros, à mercê de autoridades policiais ou militares com poderes ilimitados (e, por vezes, padecendo de distúrbios psíquicos…), tiveram a sua integridade física e mental violada, mediante sessões de tortura que provocaram a morte ou sequelas em centenas deles; magistrados e funcionários públicos que pretenderam exercer corretamente, ou seja, com independência técnica, as suas funções foram aposentados compulsoriamente, medida essa que também atingiu os servidores militares, que foram transferidos para a reserva ou reformados; e, at last but not least, a censura aos meios de comunicação e às obras artísticas e intelectuais foi largamente praticada.

As comprovadas violações de direitos humanos, com a cumplicidade ou complacência, dos governantes minaram a legitimidade do regime, em sua vertente ética, ao passo que a crise econômica advinda da elevação do preço do petróleo, a partir de 1973, solapou o apoio eleitoral ao partido do governo, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), cuja sigla lembra um local de imolação de cristãos no Império Romano…

Ulysses segurando uma cópia da Constituição de 1988 – Foto: Arquivo ABr via Wikimedia Commons / CC BY 3.0 br

O autoritarismo inconteste do regime militar mais uma vez fica evidenciado, quando em abril de 1977 o presidente Ernesto Geisel decreta o recesso do Congresso Nacional e impõe a Emenda Constitucional nº 7 à Constituição de 1967. Sob o signo do denominado “pacote de abril”: um terço dos senadores passaram a ser eleitos indiretamente (a triste figura dos senadores “biônicos”); o mandato presidencial foi estendido de 5 (cinco) para 6 (seis) anos; foram mantidas as eleições indiretas em todos os níveis (havia a previsão de eleições diretas para governadores em 1978); e, o mais nefasto dos tributos ao ideário antidemocrático, promoveu-se o agravamento na distorção da representação por circunscrições estaduais na Câmara dos Deputados, privilegiando Estados em que o partido do governo vencia as eleições (Norte do País), em detrimento dos Estados em que a oposição era vitoriosa (Sudeste).

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Ao comemorarmos os 30 anos de vigência da Constituição de 5 de outubro de 1988, que propiciou o mais longo período de normalidade democrática no País (o que não equivale à continuidade constitucional), não podemos nos esquecer de que o sistema político democrático se compõe de três ingredientes básicos: pluralismo político e participação ampla; respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, em todas as suas dimensões; e o escoramento dos outros dois vetores nas escoras institucionais do Estado de Direito, decomposto em respeito à legalidade, à igualdade perante a lei, à previsibilidade das consequências jurídicas das condutas, à separação dos Poderes e seu corolário, a inafastabilidade do controle jurisdicional.

O famigerado Ato Institucional nº 5 representou na história recente do Brasil um dos mais graves, ou quiçá o mais grave dos atentados aos postulados do Estado de Direito, inviabilizando por mais de uma década o exercício das liberdades políticas e individuais.

Que seja sempre lembrado e jamais reeditado, sob nenhuma forma ou a nenhum pretexto!

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