O acesso ao aborto por estupro: um caminho acidentado e dificultoso

Por Eduardo Blanco Cardoso, pós-doutorando no Instituto de Psicologia (IP) da USP

 25/07/2022 - Publicado há 2 anos
Eduardo Blanco Cardoso – Foto: Arquivo Pessoal

 

Recentemente assistimos ao caso de uma mãe que levou sua filha de 10 anos a um hospital universitário, em Florianópolis, logo após constatar que ela estava grávida de 22 semanas. Segundo o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro configura-se estupro de vulnerável, pelo fato de tratar-se de uma menor de 14 anos. Na oportunidade, a instituição negou-se a realizar o aborto legal, amparando-se em uma norma técnica do Ministério da Saúde que inviabiliza sua prática, acima das 20 semanas. Não conformada e orientada pelo próprio hospital, a mãe recorreu ao Poder Judiciário para obter autorização, sendo a menor persuadida a prosseguir com a gestação, com base em que, passadas as 22 semanas, seu produto teria possibilidades de vida. Dado que o fato se tornou público, com importantes repercussões dentro e fora do Brasil, o MPF local lamentou a situação e reafirmou seu compromisso em zelar pelo efetivo respeito aos direitos fundamentais consagrados na Constituição brasileira, sendo posteriormente a gravidez interrompida, sem intercorrências. De fato, situações como estas exigem a realização de procedimentos de interrupção da gestação, independentemente da idade gestacional e peso fetal, tornando-se desnecessária qualquer autorização judicial ou comunicação policial a respeito.

Lamentavelmente, o caso comentado dista de ser pouco frequente. Segundo dados aportados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, estima-se que a cada hora, um total de quatro meninas brasileiras, menores de 13 anos, são vítimas de estupro. Embora a criança tenha direito à realização de um aborto legal, aceder a esta prática pode resultar difícil e angustiante.

Para se ter uma ideia, em um país de 212,6 milhões de habitantes, apenas 76 hospitais declararam realizá-lo legalmente. Número este que se reduziu a 45%, durante a pandemia. O Comitê de Direitos Econômico, Social e Cultural das Nações Unidas estabelece que a falta de serviços de atenção obstétrica de emergência ou a denegação do aborto pode constituir um ato de “tortura ou trato cruel, inumano e degradante”.

De acordo com o artigo 128 do Código Penal e com a ADPF 548, a mulher tem direito ao aborto nas seguintes circunstâncias: se a gravidez é resultado de estupro, se representa risco de vida para a mãe e se for caso de anencefalia fetal, ou seja, quando não existe desenvolvimento cerebral do feto.

Sem lugar a dúvidas, o Brasil precisa adotar medidas mais contundentes para facilitar que pessoas contempladas nas categorias mencionadas, nas quais o aborto é justificado e permitido, possam aceder a ele de maneira expedita, confiante e segura. Não se deve esquecer que a gravidez decorrente do estupro destaca-se pela complexidade e impactos que determina nas esferas emocional, familiar, social e biológica. A gestação forçada e indesejada é sentida como uma segunda violência, intolerável e, muitas vezes, impossível de ser mantida até seu término. Sem garantia de acesso a serviços que realizem o aborto licitamente e com direitos respeitados, só existem dois caminhos: prolongar um acontecimento aberrante acompanhado de efeitos psicológicos intensos e devastadores ou, na sua ausência, interromper a gestação recorrendo ao abortamento inseguro, com graves danos para a saúde e risco de vida da gestante. A falta de compromisso relacionada com atenção da saúde sexual e reprodutiva hoje evidenciada, devido a políticas ou práticas ideológicas peculiares, assim como a negativa a proporcionar soluções baseadas no propalado “comportamento humano responsável”, revelam as dificuldades que inúmeras mulheres, independentemente de sua idade, afrontam para realizar um aborto legal em nosso país.


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