Novos rumos de “revisão de fala”: a eterna vilã

Mario Fanucchi é jornalista e professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 23/02/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 05/03/2018 as 11:08

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Mário Fanucchi – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Será justo apontá-la como vilã?…E, ainda por cima, será justo acusá-la de eternizar a própria vilania? Vejamos. Vilões, antigamente, tinham outros nomes. Para começar, apareciam no plural. Culpa dividida entre dois ou três, a critério de juízes de diferentes tendências. Hoje, a sentença parece ser unânime. Tanto é verdade, que os meios de comunicação não perdem a oportunidade de atribuir-lhes a pecha.

Sim, seu nome é Redação. Seu papel nos vestibulares é aprovar ou reprovar os candidatos, antes mesmo de considerar quaisquer outras notas. É a barreira intransponível – ponto final. Como analisar o fenômeno?

Não me proponho a fazer críticas ao sistema e, muito menos, apresentar  uma fórmula para, num passe de mágica, levar candidatos, incapazes de obter algo acima de zero, a transporem essa barreira. Sei muito bem que   todos os professores empenhados em preparar vestibulandos recorrem a um sem-número de métodos para ajudá-los. (Alguns deles exigindo, além do intelecto, invejável preparo físico…)

Ler já foi, além de obrigação, o passatempo de grande número de estudantes, num passado distante. (Distante… quanto tempo? Bem… Vamos situar na primeira metade do século 20.) O cinema era a grande sensação e o rádio já havia se firmado no mundo todo. Ouvir música – sem o velho gramofone – e ir ao cinema eram as novas formas de gastar agradavelmente o tempo. Mas havia, também, os livros. O hábito de ler continuava a ser uma alternativa. Para muitos, a descoberta pessoal do primeiro livro foi decisiva: algo que ficou na memória de muitos jovens estudantes e serve de inspiração até hoje, não obstante toda as novidades que alimentam os atuais meios de comunicação. No meu caso, por exemplo, a pequena (mas rica!) estante de um tio, uma vez escancarada para mim, foi o começo:

– Pegue um livro. Vamos… não perca tempo em escolher.

Assim, ao acaso, tirei da estante As Aventuras de David Balfour, de Robert Louis Stevenson. Era uma edição em português, editada pela Livraria do Globo de Porto Alegre, cuja trajetória tivera início em 1883, com a impressão de livros e revistas e se firmara como editora em 1928. Seu papel na cultura brasileira foi dos mais importantes, principalmente pela capacidade de seus editores e tradutores e pela qualidade gráfica de seus livros.

Seu nome é Redação. Seu papel nos vestibulares é aprovar ou reprovar os candidatos, antes mesmo de considerar quaisquer outras notas. É a barreira intransponível – ponto final.

Mas me deixem contar um pouco sobre a reação do menino que, até então, só havia lido as histórias em quadrinhos de O Tico-tico e de outros gibis, em geral traduzidos. Que experiência fantástica! A cada página, eu parava de ler para saborear de novo a ação e o diálogo! Mas logo retomava a leitura, ansioso por me deixar envolver na trama. Ler passou a ser, para mim, uma diversão que começava na escola e terminava, tarde da noite, no quarto que dividia com meus irmãos mais novos (que choramingavam, pedindo para eu apagar  a luz). E, desde então, ainda tenho agradáveis surpresas com a leitura (mesmo quando estou diante de um e-book, relendo um dos meus livros favoritos). Tudo isso, para dizer que acredito no papel da leitura como o meio para capacitar uma pessoa a escrever com suficiente clareza e acerto para passar em uma prova de Redação. O problema é que essa prática leva tempo e, às vezes, pela falta de hábito, o vestibulando tem dificuldade em concentrar-se na leitura; distrai-se facilmente e se deixa vencer pelo desânimo. Pois esse é o momento de insistir. Talvez a lembrança de uma história, que ele encontrou num livro, anos atrás, possa  vir em seu socorro. Ou, em lugar da história, ele pode se lembrar de personagens fascinantes que deixaram marcas em sua memória. O modo de se deixar empolgar por uma leitura pode variar incrivelmente, a ponto de cada pessoa ter seu jeito pessoal de fazê-lo. Mas isso é importante?, perguntará alguém – não basta correr os olhos pelas páginas, organizando mentalmente as palavras, as frases, a pontuação etc. – com o propósito único de chegar ao essencial: ser capaz de escrever?! Por que um personagem como David Balfour seria importante, ainda mais se seguido de um Oliver Twist, de um Huckleberry Finn e de outros mais que viessem para completar a primeira experiência de um menino com os livros? Porque estamos falando de uma vontade e vontade é emoção. Respire fundo. Repasse o que você já leu. Você vai chegar lá.

 

Novos rumos de Revisão nas falas: Continuamos trabalhando para contatar profissionais em atividade nos meios de comunicação – setores de jornalismo, revisão, locução e apresentação em rádio e TV – para, juntos, darmos andamento à discussão do projeto.

Comentário: Agradeço aos voluntários na guarda do nosso idioma, cujas contribuições têm enriquecido o nosso arquivo e constituem valioso argumento em favor da Pós-Revisão.

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