Nova Oceania ou A República dos Vigilantes

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira na ECA

 13/05/2019 - Publicado há 5 anos

Jean Pierre Chauvin – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A gente da Bruzundanga gosta de raciocinar por aforismos (Lima Barreto)[1].

Entre 2009 e 2014, lecionei numa instituição de ensino em que mantive relação muito saudável com praticamente todos os alunos e/ou orientandos de TCC. Eis que, certa feita – digamos que no segundo semestre de 2013, numa quinta-feira à noite, por volta das 21h –, recebi mensagem de uma pessoa de lá, que me alertava sobre o fato de que um grupo de alunas estaria a gravar (com o celular) as aulas sob minha responsabilidade.

Dileta(o) internauta, o propósito da turma não era didático, como desde logo adivinha. Perturbado com o gesto (que, evidentemente, não envolvera consulta por parte das estudantes), acessei o grupo de alunos e docentes da Faculdade, hospedado em uma rede social. Lá postei o relato de um professor gaúcho que explicava o teor da lei que desautoriza o registro audiovisual de uma aula, e sua divulgação sem autorização prévia do professor.

Imediatamente após compartilhar o texto com os membros do grupo virtual, que contava com milhares de internautas vinculados à instituição, abandonei-o. Na semana seguinte, quando voltei a me encontrar com as alunas que haviam posicionado os celulares sobre as carteiras durante a aula, não mencionei o assunto; mas também não constatei qualquer aparelho eletrônico em evidência.

Repare. Isso aconteceu há seis anos. Qual a novidade, embutida em atitudes similares adotadas em nossos dias? Talvez o fato de que os recentes episódios, envolvendo alunos (e seus pais) contra professores, traduzam o discurso que antagoniza uns e outros, num cenário francamente desolador – pois compactuado (para não dizer incentivado) por pessoas em cargos estratégicos que, por sinal, pouco ou nada entendem de educação; e, o que é mais grave, são incapazes de enxergar o professor como uma referência – como profissional a ser, pelo menos, respeitado por seu saber e atuação em favor do coletivo.

Os estudantes seriam incapazes de pensar para além do que é dito em sala de aula? No estágio em que adentramos, o discurso único e unificador revela-se uma poderosa falácia. Como assegurar a imparcialidade do juízo? Quem está autorizado a julgar a fala do professor? Haverá contrapartida para o docente? Poderei, como autoridade da sala de aula, lamentar que alunos deem mais atenção ao celular que à nossa exposição? Estaremos impedidos de responder a perguntas capciosas, formuladas por um auditório que esteja mais preocupado em registrar falas isoladas e “comprometedoras” do que em aprender?

Cenas desse tipo são especialmente tristes e aviltantes, ainda mais para quem já testemunhou o poder “transformador” (Maria Montessori), “libertário” (Paulo Freire) e “emancipador” (Jacques Rancière) do ensino. Vale lembrar que as coisas acontecem no tempo, no espaço, e em acordo com o potencial de ódio fomentado por sujeitos que só veem ideologia ou contravenção naquilo que contradiz o que pretendem. O suposto combate aos discursos de cunho “ideológico” demandaria discutir o que o enunciado acusatório significa.

Recorro a uma aula de Paul Ricouer: “A ideologia designa inicialmente um processo de distorção ou de dissimulação pelo qual um indivíduo ou um grupo exprime sua situação, mas sem conhecê-la ou sem reconhecê-la”[2]. Nesse sentido, não haverá ideologias fora da sala de aula? No táxi? Nos transportes coletivos? Nas capas de revista? Nas telas de tevê? Nas microtelas dos smartphones? Nos grupos de mensagem eletrônica, a disseminar falsas verdades com convicção?

Por que as práticas de vigilância aumentaram entre 2018 e 2019? Em parte, porque o espírito fratricida tem sido cultivado desde que nos tornamos pseudonacionalistas. De 2013 para cá, a palavra armada e o gesto brusco explodiram e tomaram o país de assalto. Não quer dizer que isso não acontecesse em outros momentos de nossa história. Um parente meu foi parar duas vezes nos porões do Dops por ter feito ligeiras ressalvas ao governo, no início dos anos de 1970. Delatado por alunos. “Com toda a probabilidade a pessoa da mesa vizinha era espiã da Polícia do Pensamento”, pondera Winston Smith, o protagonista de 1984[3].

Por que o embate acontece na sala de aula? Porque o professor brasileiro foi precarizado e, em paralelo, condecorado do avesso, como uma espécie de apêndice social. Porque os docentes desaprenderam a pensar e agir coesa e solidariamente em favor de si mesmos e do grupo que representam. Porque há uma sanha anti-intelectualista em nosso triste país.

Passou-se a atribuir miséria não à má administração educacional e à falta de infraestrutura, mas ao discurso de um punhado de professores, em tese capazes de insuflar as massas contra o Estado, os bancos e o discurso de ódio. Falta pouco para sermos apontados na rua como sujeitos de alta periculosidade. “O macacão azul não podia ser comum numa rua como aquela. Na verdade, era imprudente ser visto em tais lugares, a não ser que tivesse uma tarefa específica. As patrulhas podiam detê-lo se o vissem”[4].

Talvez outro episódio ajude a ilustrar o que a vigilância maliciosa e mal-intencionada implica. Quando li 1984, de George Orwell (pseudônimo de Eric Blair), em 1988, experimentei o poder máximo de “chacoalhamento” que a boa literatura provoca. A indicação partira de Wanda Antunes – brilhante professora de filosofia que lecionou no Colégio da Companhia de Maria naquele ano. Para estimular a leitura, foi agendada uma data para a exibição do remake homônimo, lançado no Canadá quatro anos antes.

O impacto do filme, com trilha sonora do Eurythmics[5], e protagonizado por John Hurt no papel de Winston Smith, foi enorme. Recordo-me de ter deixado a sala de aula em silêncio e de ter retornado para o debate, após o intervalo, cheio de palavras novas, nascidas, veja só, da reflexão. Quem pensa, em geral, costuma ter em melhor conta essa habilidade, por enquanto exclusivamente humana. Isso se não for prejudicado pela violência, em imagem e palavra de fingida voluntariedade: “Na teletela uma mulher com voz de lata berrava uma canção patriótica”[6].

Porventura haja pessoas que não leram o romance inglês. Desse modo, quero lembrar o ambiente rude, miserável e hipócrita, figurado em 1984; a minúscula célula habitacional que o protagonista (sem voz) ocupa; o incentivo dos governantes a que o povo odeie o fictício Emmanuel Goldstein (a preencher a tela durante os dois minutos de ódio), numa das cenas mais impactantes que conheço. Como se instaura o descrédito em algo ou alguém? Por intermédio da linguagem. “Em Novilíngua não existe palavra para ‘ciência’”[7], diz o narrador orwelliano.

Quatro fatores podem comprometer Winston Smith: 1) entrar na posse de um diário e nele escrever; 2) envolver-se afetivamente com Júlia; 3) questionar determinadas recomendações do Partido; 4) confiar, acriticamente, em O’Brien. O romance é perturbador. Provoca desconforto. Mas quem disse que agimos, quando dominados pela apatia ou pela resignação?

Quando Wanda Antunes nos perguntou o que nos diferenciava em relação às personagens do romance, lembro-me de ela ter celebrado a resposta que dei, perante a turma (relembro que era um debate): “Professora, a diferença é que no romance, as diferentes classes sociais não conversam”. Afinal, “o estado geral de escassez aumenta a importância dos pequenos privilégios e assim amplia a distinção entre um grupo e outro”[8].

Será esse o destino que nos aguarda? Mergulhados em nossos compromissos, a que atribuímos maior ou menor seriedade, estaremos condenados a lecionar como se despossuídos de bagagem, leituras prévias, capacidade de articular pensamentos e formular respostas convergentes ou contraditórias? Desde quando esquecer é a melhor alternativa? Nossos nomes serão extintos? “Syme não estava apenas morto, fora abolido, era uma impessoa[9].

Se a resposta for sim, o que as câmeras de celular terão mais a nos ensinar? A tropeçar com os outros nas ruas? A perder audição debaixo de fones megapotentes? A prestar maior atenção às microtelas que às pessoas à nossa volta? A desqualificar a palavra, o saber e a trajetória dos professores? Feito personagem, quero acreditar que não. “– Não estamos mortos ainda – contestou Júlia, prosaicamente”[10]. Alunas, alunos, deem as mãos para os seus professores.

 

[1] Os Bruzundangas, Rio de Janeiro, Garnier, 1998, p. 89.

[2] “Aula introdutória”, in A ideologia e a utopia, trad. Silvio Rosa Filho e Thiago Martins, Belo Horizonte, Autêntica, 2015, p. 15.

[3] George Orwell, 1984, 20ª ed., trad. Wilson Velloso, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1986, p. 61.

[4] Idem, p. 81.

[5] 1984 (For the Love of Big Brother), RCA/Virgin Records, 1984.

[6] George Orwell, op. cit., p. 97.

[7] Idem, p. 181.

[8] Idem, p. 180.

[9] Idem, pp. 148-9.

[10] Idem, p. 128.


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