O processo de pesquisa parte do conhecimento científico disponível, identifica suas lacunas ou insuficiências em busca de respostas a novos problemas ou obtenção de outras respostas para problemas existentes. Assim sendo, os resultados terão validade enquanto não forem submetidos à crítica e revisão. O que costuma suscitar outros estudos sobre o mesmo objeto, normalmente diversificando métodos ou referenciais teóricos e empíricos, alcançando conclusões diferentes. O conhecimento anterior perderá sua validade a depender do potencial da nova explicação. O conhecimento científico, portanto, é sempre provisório. Sem crítica fundamentada, sem questionamento, não existe ciência.
O conhecimento científico a respeito do ensino da Educação Física não foge a essa regra. No campo histórico, por exemplo, se desconhecia a existência de pedagogias afastadas do paradigma da aptidão física durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Isso se deve aos materiais analisados e métodos empregados. Por muito tempo, as pesquisas se concentraram nos documentos legais. Logo, os resultados convergiam para a exclusividade de um ensino pautado nos princípios biologicistas. A situação se modificou quando os pesquisadores e pesquisadoras garimparam e estudaram planos de aulas, registros escolares ou entrevistaram professores e professoras que atuaram nas décadas de 1960 e 1970. Os resultados trouxeram um certo alento à história do componente. Felizmente, nem todos fomos tão subservientes aos modelos impostos quanto fizeram crer as pesquisas anteriores. Contudo, infelizmente, os novos conhecimentos ainda não conseguiram modificar a representação do ensino de Educação Física daquela época.
Vejamos um caso mais complexo. É sabido que a identidade da área atravessou um período de crise em que seus pressupostos foram questionados, abrindo caminho para o surgimento de um conjunto de propostas que configuram o que se fez conhecer por Movimento Renovador. As novas teorias de ensino buscaram romper com o paradigma da aptidão física mencionado no parágrafo acima. Surpreende o fato que uma parcela considerável de artigos, dissertações e teses que abordam o assunto passe ao largo das concepções pautadas na psicologia do desenvolvimento para conferir exclusividade às perspectivas baseadas no materialismo histórico ou na teoria da ação comunicativa, mesmo que as primeiras sigam influenciando a prática pedagógica de muitos professores e professoras, enquanto as segunda e terceira, após mais de trinta anos de sua divulgação, careçam de efetividade na escola, o que só se adquire com a publicação de experimentos bem-sucedidos. É interessante observar essa dupla negação da ciência. Por um lado, apenas as propostas críticas são vistas como renovadoras e, por outro, a insuficiência de trabalhos de campo inviabiliza sua compreensão e adoção.
O negacionismo científico no ensino da Educação Física possui, ainda, uma faceta da maior gravidade, e que exige uma reflexão mais profunda. Apesar da política curricular ter inserido o componente na área de Linguagens desde o fim do século passado e da disponibilidade de pesquisas indicando a potência da perspectiva cultural do componente para efetivação de um currículo democrático e democratizante, observa-se em determinados segmentos universitários a prevalência de um pensamento ultrapassado, alicerçado nas promessas não realizadas das teorias de ensino concebidas sem base empírica, ou seja, à revelia do que acontece na escola. Causa espanto, mas não são poucos os que negam que as práticas corporais (brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas) possam ser tomadas como textos da cultura perpassados por relações de poder que produzem as diferenças de classe, raça, etnia, religião, gênero e orientação sexual. Em vez disso, preferem seguir apostando no aprimoramento das habilidades motoras, no ensino dos esportes hegemônicos, no estímulo à adoção de um estilo de vida fisicamente ativo ou na denúncia à ideologia capitalista incrustada nas manifestações da cultura corporal.
É evidente que essa postura um tanto ingênua deixa sequelas na formação de professores e professoras. Basta verificar que em muitos cursos de Licenciatura em Educação Física, precisamente onde se deveria primar por uma formação pautada em conhecimentos científicos – o que só pode ser feito mediante estudo e discussão de trabalhos de relevo no campo das ciências da educação e das metodologias do ensino, como também pela aproximação dos estudantes da prática investigativa –, acabam disponibilizando aos licenciandos um repertório conceitual desatualizado e divorciado das demandas da sociedade contemporânea. As pesquisas sobre o tema mostram que grande parte das egressas e egressos, ao depararem com uma realidade para a qual não foram formados, mergulham na frustração e acabam abandonando a docência, não sem antes responsabilizar as crianças e jovens ou a estrutura e funcionamento das escolas pela própria incompetência. Convenhamos, negar a ciência tem um quê de sadismo e perversidade.
Deixemos os exemplos de lado para postular as razões para o negacionismo científico no ensino da Educação Física. Iniciemos pela mais trivial: o sujeito não compreende a teoria. É o que se observa diante da crescente divulgação dos estudos sobre as intervenções pedagógicas inspiradas nas teorias pós-críticas. As reações negacionistas se apoiam na ignorância dos argumentos pós-estruturalistas e pós-colonialistas. Assim sendo, a dificuldade de compreender a epistemologia da teoria curricular cultural converte-se em negação das suas evidências. Seria bem mais interessante apropriar-se dos referenciais pós e, aí sim, debruçar-se sobre os trabalhos existentes, criticá-los, reconhecer suas eventuais falhas, o que ajudaria a melhorar a proposta. Reiteramos, sem crítica fundamentada não há ciência.
O negacionismo também pode ser atribuído a uma certa visão restrita do processo de produção de conhecimentos. A pós-modernidade tem se constituído como cenário propício à criação e invenção de métodos de pesquisa, principalmente nas ciências humanas. Os setores mais alinhados aos modelos positivistas e estruturalistas nem sempre veem com bons olhos outros gestos investigativos. Daí decorre a negação de toda e qualquer contribuição que possam trazer.
Em muitos casos, o negacionismo científico se deve a crenças disseminadas pelos discursos que circulam nos meios de comunicação, provenientes das entidades que agregam os profissionais da área ou, ainda, na literatura de qualidade questionável. Pensar, por exemplo, que todas as teorias de ensino possuem aspectos positivos e, portanto, seria recomendável misturá-las aproveitando o que cada uma possui de melhor, consiste em equívoco cientificamente comprovado. O mesmo raciocínio vale para o entendimento de que a brincadeira ou esporte são atividades pedagógicas per si e que à Educação Física cabe simplesmente garantir a prática com vistas ao lazer ou competição. Outra crença impregnada no ensino da Educação Física sem comprovação científica é a que concebe as aulas do componente como ambientes adequados à promoção da saúde. Sabe-se que a aquisição de um melhor condicionamento físico por meio de exercícios requer o atendimento aos princípios da individualidade biológica, sobrecarga, interdependência volume e intensidade etc., algo impraticável nas escolas, além de não figurar entre os seus objetivos.
Por fim, às vezes, o negacionismo no ensino da Educação Física ocorre porque o sujeito deseja atrair adeptos para a própria causa ou promover uma certa concepção mesmo que desprovida de sustentação teórica. Isso leva à desvalorização do conhecimento científico. Existem pessoas que estão presas a falsas verdades e se sentem ameaçadas quando as teorias que defendem são questionadas. Então, qualquer conhecimento que divirja, que coloque em dúvida suas certezas, precisa ser derrubado, nem que isso implique agir sorrateiramente ou maltratar quem pensa diferente. Compõem esse grupo aqueles e aquelas que ganharam alguma visibilidade na área em função da repercussão de suas ideias num determinado momento. Fizeram boas contribuições no passado, mas permanecem naquele lugar. Não percebem que a sociedade muda, a escola muda, a ciência muda, as pessoas mudam. A postura negacionista e a repetição do discurso faz com que se mantenham sob os holofotes porque isso tranquiliza seus seguidores. Sabemos que o discurso científico é complexo, enquanto o anticientífico é de fácil compreensão e aceitação. Ademais, se o ouvinte ou leitor já conhece aquela teoria e se dá conta que seu defensor apenas a reafirma sem qualquer criticidade ou revisão, soará desnecessário acessar outros discursos. É inquestionável o prejuízo dessa conduta para o desenvolvimento científico da área, o que depende da busca de novas respostas para os velhos problemas, a identificação de problemas novos e a realização de pesquisas para compreender as suas razões e consequências.
A partir dessas ponderações queremos exortar a comunidade a combater o negacionismo científico no ensino da Educação Física devido ao risco que representa para a qualidade do trabalho pedagógico. Professores e professoras que ao longo da formação inicial ou continuada não exercitaram a crítica, a análise e o confronto de teorias; que não desenvolveram posturas investigativas ou não aprenderam sobre como funciona o processo de produção de conhecimentos, provavelmente serão seduzidos por narrativas anacrônicas de pouca ou nenhuma valia no atual contexto em que as práticas corporais têm sido tratadas como mercadorias e os estudantes transformados em consumidores. Um exemplo concreto é o comportamento apático da categoria diante de políticas públicas como a versão homologada da Base Nacional Comum Curricular. Em que pese a fragilidade conceitual que caracteriza o documento oficial, muitas redes de ensino e escolas têm copiado partes ou a integralidade do texto sem o desejável tensionamento. Enquanto isso, pelo Brasil afora já se ouvem professores e professoras reproduzindo acriticamente desacertos como “práticas corporais de aventura”, “esportes de invasão” e “dimensões do conhecimento”.