Narrativas da memória

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) e membro da Academia Olímpica Brasileira

 29/05/2019 - Publicado há 5 anos

Katia Rubio – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Eu sou daquelas pessoas que não aguentam cenas de violência e suspense em filmes, principalmente se elas estão dentro de uma trama cujas cores e trilha sonora colaboram para a dramaticidade. Enquanto as narrativas escritas têm o poder de me preparar para todo o tipo de suspense e violência, a imagem me causa paradas cardíacas e respiratórias, às quais não faço muita questão de me submeter. Por isso, sou fã número 1 de spoilers. Depois de saber tudo o que aconteceu no episódio, inclusive as diferentes versões sobre a insatisfação do espectador, eu vou à fonte para ter as minhas próprias impressões. Afinal, agradar a todos é tarefa quase impossível.

A última temporada da série Game of Thrones foi aguardada por dois anos, e claro, circulou em torno dela todo tipo de estratégia de mercado para causar ainda mais apreensão. Apesar de espetacular, ela também carregava diferentes situações fantásticas e humanas, cujo imaginário arquetípico é tão próximo daqueles que vivem com os pés no chão e os olhos nos noticiários diários mundo afora. Cenas e diálogos da série diziam muito sobre pessoas e políticas contemporâneas, gostemos delas ou não. Meu interesse maior recaiu sobre o tópico da construção da memória, da afirmação de narrativas dos vitoriosos, e, obviamente, sobre o esquecimento.

Conforme Paul Ricoeur, em sua reflexão acerca da identidade narrativa, a constituição ontológica do “homme capable” implica a consideração de quatro dimensões fundamentais do testemunho de si próprio no mundo: a linguagem, a ação, a narrativa e a ética. Em Tempo e narrativa, Ricoeur transita entre a narrativa histórica e a narrativa de ficção em busca de uma possível experiência que pudesse integrar esses dois modelos narrativos. Nesse processo o autor chegou a uma hipótese segundo a qual a constituição da identidade narrativa era justamente o lugar procurado da fusão entre história e ficção. Em outras palavras, sendo a ficção uma construção humana, seja ela uma obra ficcional ou uma história de vida, elas estarão necessariamente referenciadas nas vivências e intenções do autor. Tornam-se mais compreensíveis quando lhes são aplicados modelos narrativos, como é o caso das intrigas, subtraídas da história e da ficção, sejam elas drama ou romance. Ou seja, as semelhanças de cenas apresentadas em uma série ficcional guardarão óbvias semelhanças com aquilo que alguns insistem em chamar de “realidade”.

Ao longo da pesquisa com a memória do esporte olímpico brasileiro, pautada exclusivamente na narrativas de atletas brasileiros, foi possível constatar essas assertivas.

Depois de ouvir mais de mil histórias de atletas que viveram o esporte olímpico, em um país no qual o esporte nunca chegou a ser uma política de Estado, foi possível compreender como histórias pessoais são compreendidas como ficção. Algumas efetivamente parecem incrivelmente inverossímeis. É inacreditável que alguns medalhistas, cujas trajetórias foram feitas de precariedade e falta, tenham dividido o pódio com tantos outros seres humanos espetaculares cunhados na abundância de recursos e apoio. Estou convencida de que a história de Sansão e Golias é muito menos atrativa.

Brienne de Tarth registra no livro de memória dos 7 Reinos a trajetória de Jaime Lannister, o irmão da rainha. Personagem controverso, capaz de ser herói e vilão, a depender do ponto de vista de quem analisa sua trajetória, foi um cruel guerreiro, mas foi também um gentleman ao lutar pela vida de algumas pessoas próximas.

Mas foi apenas com o passar dos anos que também constatei como as narrativas pessoais são moldadas ao desejo e à necessidade dos narradores. De um lado, há uma narrativa coletiva construída sobre um feito público que é a competição em si e toda a sua representação para o esporte e para o país do momento em que ela ocorreu. Ou seja, afirmo aqui que o esporte é muito mais do que um entretenimento. Ele é identidade nacional, ele é a metáfora de guerras não realizadas em campos de batalha, ele é uma atividade humana capaz de tornar-se imagem metafórica de inúmeras representações. E nessa condição, a narrativa foge ao controle do atleta. Sua história pode ser construída a partir de muitos elementos, e do poder, de quem escreve sobre ele. A escrita tem essa força, afinal ela afirma os documentos, considerados por muito tempo, a fonte crível de fatos históricos. Por mais que os aedos tivessem a propriedade de cantar eventos épicos, ou que a tradição oral mantivesse vivos os acontecimentos cotidianos, relegados à sua condição da vida ordinária, são as marcas impressas em paredes, papiros ou papéis que permanecem vivas na memória, longe do esquecimento.

Game of Thrones afirma essa máxima, quando Brienne de Tarth registra no livro de memória dos 7 Reinos a trajetória de Jaime Lannister, o irmão da rainha. Personagem controverso, capaz de ser herói e vilão, a depender do ponto de vista de quem analisa sua trajetória, foi um cruel guerreiro, mas também um gentleman ao lutar pela vida de algumas pessoas próximas. A determinação da categoria à qual ele pertencia varia conforme o ponto de vista do observador. O que se sabe é que ele é perpetuado como herói, porque assim o descreveu aquela que registrou sua trajetória final. É o poder conferido à mão de quem pensa e à força da pena que imprime o papel. Não basta apenas um feito, é preciso um registro fantástico sobre ele para sua perpetuação.

Os registros sobre os feitos olímpicos foram realizados desde a primeira edição olímpica em 1896. O que se tinha no princípio era o jornal impresso e nele os cronistas da época descreviam, com requintes de detalhes, a trajetória do atleta e a prova disputada, vencida ou perdida. Com o advento do rádio as provas passaram a ser transmitidas e nas ondas sonoras podia ser capturada a emoção do momento exato de uma competição que envolvia o esforço individual e os embates coletivos. A partir da década de 1930 passou-se a ter o registro da imagem em movimento, uma revolução narrativa que, obviamente, passava pelo olhar do diretor que determinava o que e quando capturar. Poucos, entretanto, buscaram ouvir o registro impressionista que o protagonista tinha a dar, revelando assim quem ele era ou é. Essa é a razão por que tantos atletas que fizeram a história do esporte nesse país caíram no esquecimento. Imortalizados como personagens de um grande evento, deixaram de ter uma identidade pessoal para ser atletas, identidade sustentada em uma vida breve que é a carreira competitiva. Longe das quadras, campos, pistas, piscinas e ginásios, tiveram sua imagem apagada da memória por serem recolhidos da cena esportiva, deixando de ser alguém para se tornarem ninguém, muito embora tenham sido a estrutura para as gerações futuras. Nunca é tarde para lembrar que o registro escrito é feito por quem venceu a batalha.

Poucos foram aqueles que se ocuparam da tarefa de perpetuação dessa memória, contribuindo assim para o desentendimento daquilo que é o presente.

Faltam poucas semanas para o início dos Jogos Pan-Americanos e no próximo ano teremos mais uma edição dos Jogos Olímpicos. E então as atenções se voltam para aqueles que protagonizaram essas competições. Muitas vezes, a finalidade dessa lembrança é apenas e tão somente ilustrativa. Pouco se ouve de fato sobre a vida dessas pessoas, quem elas eram e são e o que elas pensam de tudo isso. Ouve-se apenas sobre a identidade de atleta, esquecendo-se do humano que abriga aquela identidade.

Alguns, como Jaime Lannister, tiveram a oportunidade de ter defendido uma mulher como Brienne de Tarth e ganharam o privilégio de receber o registro da história escrita com o carinho e a gratidão de quem foi salvo da morte. Outros amargarão os registros frios dos anais das competições, que certamente colaboram para o esquecimento.

 


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