Massao Ohno, Hilda Hilst e três triplos

Gutemberg Medeiros é doutor pela Escola de Comunicações e Artes e membro do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição (ECA-USP)

 08/04/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 09/04/2019 as 18:45
Gutemberg Medeiros – Foto: Atílio Avancini

 

Agosto de 1986. Estava com Hilda Hilst em sua residência, a chácara Casa do Sol, nas imediações de Campinas (São Paulo). Dante Casarini, seu ex-marido e amigo que residia e produzia suas esculturas ali, chegou da cidade e trouxe a correspondência.

Destacava-se um pacote em papel pardo. Hilda logo viu o remetente, Massao Ohno, e ficou muito ansiosa. Esperava a edição de seus poemas intitulados Sobre a tua grande face. Medindo 23 x 21 cm, a capa branca destacava negro grafismo de Kazuo Wakabayashi. Massao jamais mostrava provas para avaliação de Hilda. Ela sempre enviava a cópia datilografada e, tempos depois, recebia o livro impresso.

A ansiedade deu lugar à contemplação. Por certo tempo, ela ficou ali em pé, ao lado da mesa da sala de jantar, olhando fixamente para a capa. Algo completamente fora dos padrões de Hilda. Paralisada. Imantada. Aos poucos, suave sorriso se desenhou. O rosto se iluminou intensamente. Júbilo. Êxtase. Tudo muito intenso, mas calmo. Começou a virar página por página e se detinha em cada uma com a mesma rutilância silenciosa. Após fitar a quarta capa, voltou seu rosto iluminado para o meu e disse em voz baixa, calma, firme:

– Massao é um poeta.

Em 19 anos de convivência com Hilda, foi o maior elogio que já a ouvi dirigir a alguém. Ela começou como poeta na adolescência, publicou seu primeiro livro de poemas aos 20 anos (Presságios). Entre 1966-1968, produz oito peças de teatro, todas com alto teor lírico. A prosa poética iniciada em 1969 foi editada pela Perspectiva (1970) e, ao longo de sua vida até 2004, revezou prosa e poesia. Todo o tempo se identificava como “poeta”.

Extremamente rigorosa em suas leituras, apenas a poucos dirigiu o mesmo termo quase sagrado. Jorge de Lima, Carlos Maria de Araújo, Carlos Drummond de Andrade, Ezra Pound, Lupe Cotrim Garaude, Marly de Oliveira. E mais alguns poucos que Hilda realmente chamava de poeta. Massao foi o último.

Três triplos

Abril de 1990. Pós-plano Collor. Os ativos financeiros cassados. Dinheiro não havia e só se comprava o estritamente essencial, comida e medicamentos. Massao promoveu o lançamento duplo da prosa O caderno rosa de Lori Lamby e poemas Amavisse.

O dia amanheceu com a capa do caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, tomada com entrevista de Hilda feita por Beatriz Scalzo exclusivamente sobre Lori. A escritora criou um discurso para chocar a todos e conseguiu. Decidiu escrever um pornô imundo para vender em banca de revista, já que por décadas escreveu o melhor da prosa e poesia em língua portuguesa e não conseguia viver de seu trabalho. “A santa levantou a saia”, foi uma de suas sínteses para expressar como a escritora citada no Olimpo literário em obras de referência como História concisa da literatura brasileira, agora se dedicava a bandalheiras grossas.

Eu trabalhava em assessoria de imprensa em Santos e nada sabia dessa capa da Folha e tampouco que se seguiu uma longa peregrinação por outros veículos de imprensa de todos os tipos, como Rádio Eldorado. Foi a notícia do dia.

Outra tempestade, pluviométrica, se precipitava desde as primeiras horas da manhã em Santos e São Paulo. Só consegui sair da redação às 18h, fui trocar de roupa em casa, subi a Serra do Mar de ônibus, peguei metrô da estação Jabaquara ao Paraíso (não existia o ramal verde) e tomei ônibus para a Avenida Paulista. Desci e peguei outro coletivo para os Jardins, rumo ao Evelina Bar, casa chique (e cara). No meio da tempestade, meu guarda-chuva foi levado. Cheguei encharcado em frente ao bar às 22h. Tinha certeza de que o lançamento, iniciado às 19h30, teria acabado. Só queria ver o ambiente para descrevê-lo depois a Hilda. Certamente ela me daria gelo de seis meses por ter faltado ao lançamento.

O bar estava lotado. Era muito comprido da porta até o fundo, que pouco eu divisava com longa fila. Perguntei ao último o motivo da fila: “É uma velha louca que publicou pornografia suja”. Hilda conseguiu, pensei. Após falar com ela, em plena sessão de autógrafos sempre acompanhada de copo de scotch whisky – a dose era mais cara do que um dos livros –, fui procurar Massao.

Nunca estivera com ele e vinha também entrevistá-lo para matéria sobre o lançamento para jornal de Santos. Eu o vi sozinho em mesa acompanhado de um copo. Ereto na cadeira, observava o ambiente pleno de pessoas e barulhos. Apresentei-me e ele me convidou a sentar. Pedi a entrevista, se negou e perguntei o motivo:

– Estou em desvantagem. Você está sóbrio e eu não –, afirmou com a sua tranquilidade peculiar em nada acusando embriaguez. Tentei argumentar que viajara de Santos enfrentando tempestade só para isso. E não tinha dinheiro para consumir nada naquele lugar de preços tão altos, especialmente logo após a terra arrasada do Plano Collor.

Ele disse que aquilo não era problema. Chamou o garçon, pediu dose tripla sem gelo de scotch whisky para mim e que marcasse em sua comanda. Hilda já me contara como Massao fazia. Se acaso sentia que o autor tinha capacidade de levar ao menos 50 leitores ao lançamento, o fazia em algum bar refinado. Além de comprarem o livro, consumiam na casa. Assim, bebia durante todo o evento seu whisky de graça. Com a Hilda a diferença era também liberar a comanda dela, ambos rivalizavam no alto consumo.

Conversamos amenidades sobre o lançamento e consumi minha dose tripla. Pedi a entrevista e ele alegou a mesma desvantagem. Apenas depois de eu sorver a terceira dose tripla sem gelo ele consentiu em dar a entrevista. Já estava para lá de alegre. Completamente à vontade. Disparei à queima-roupa:

– Massao, você é um ótimo e péssimo editor. Faz livros que são verdadeiras obras de arte. Mas não distribui as tiragens pequenas de mil exemplares. Quando muito, desova na livraria Belas Artes [pequena e refinada que existia na Avenida Paulista quase com Consolação] ou na Pau Brasil [outra de mesmo perfil em frente ao Centro Cultural São Paulo] e mais nada. A coisa mais difícil é encontrar livro seu.

Massao me olhou sério e explicou – sempre calmo, ereto e sem traços de embriaguez:

– Isto é um equívoco que me persegue há anos. Nunca fui editor.

– Como assim? – alterei-me. E continuei acalorado e falando alto.

– Desde 1960 vejo livros publicados por você com a chancela “Massao Ohno Editor” e o logo Yin e Yang avermelhado…

– Não sou editor, sou designer gráfico. Vivo disso. Há anos vejo ótimos poetas sem editora. Os editores dificilmente publicam poesia, alegam dar prejuízo. Então eu publico para o poeta apresentar a sua produção impressa nas editoras. Causa bem melhor figura mostrar a obra em livro do que em cópias datilografadas. Não edito para o leitor final, mas para editores. Logo, não posso ser chamado de editor.

Justificou que sempre era procurado por pessoas que queriam transformar poemas ou contos em livro e sabiam da qualidade de seu trabalho como designer. Geralmente pessoas sem talento literário algum, queriam apenas ter aquilo em livro para presentear amigos ou familiares. Além do projeto do livro, como conhecia bem o segmento das gráficas, oferecia-se para viabilizar a publicação sendo também devidamente remunerado por isso. Massao tirava o próprio sustento e, assim, ainda segundo ele, conseguia publicar sem custo os amigos poetas, como Hilda.

Fiquei espantado com a resposta, mas passei em frente. No máximo, ele editava dois livros de amigos poetas e Hilda era diferente, era o autor que mais publicara até então. E perguntei o motivo. Massao não titubeou: “Porque é o maior poeta vivo em língua portuguesa. Jamais digo não a Hilda quando me envia originais”.

Se não é verdade, é bem rimado, é bem Massao.

 

 

 

 

 


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