Maria Martins: “Mas não se esqueça, ela veio dos trópicos”

Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e membro da ABCA

 06/06/2019 - Publicado há 5 anos

Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Vinda de família abastada, Maria Martins (1894-1973) recebeu educação destinada às “moças da elite” – tal como Tarsila do Amaral (1886-1973). O divórcio precoce do primeiro marido, o historiador Otávio Tarquínio de Souza (1889-1958) e, posteriormente, o segundo casamento com o diplomata Carlos Martins Pereira e Souza (1884-1965) também foram circunstâncias semelhantes às da pintora, assim como seu interesse relativamente tardio pela arte aos 30 anos de idade. Exceto por serem exemplos da atuação da mulher na arte, as semelhanças entre as duas artistas param por aí. Some-se à dupla Anita Malfatti, como expoente da força da mulher na arte moderna brasileira. Porém, a singularidade da escultura de Maria Martins tornou-se um capítulo distinto no modernismo e, hoje, afastada dos paradigmas de uma época, traz questões desafiadoras sobre o feminino na arte.

Estruturada inteiramente no campo internacional, sua formação como escultora teve as primeiras iniciativas vinculadas a materiais, como cerâmica, terracota, mármore e cera perdida em Quito e em Tóquio – lugares nos quais residiu por algum tempo, porém, Bruxelas e Nova York tornaram-se as bases para a maturidade de sua produção artística: nas duas cidades, se efetivaram o aprendizado com Oscar Jespers (1887-1970) e as lições sobre a fundição em bronze com o escultor Jacques Lipchitz (1891-1973), respectivamente. Envolta por um intenso círculo social, Maria Martins conviveu com Piet Mondrian, Salvador Dalí, Brancusi, Max Ernst, Alexander Calder, Roberto Matta, Marc Chagall, Fernand Léger, André Masson e André Breton – que a considerava membro do grupo surrealista. Aqui uma divergência entre Maria e Breton: ela não gostava de “ismos” – quando se referia à linguagem de seus trabalhos declarava “dizem que sou surrealista”. Ela assinava em suas obras apenas “Maria” – como se separasse as outras personas da sua face de artista.
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Maria Martins – A soma de nossos Dias na Exposição Visões da Arte no acervo do Museu de Arte Contemporânea (MAC). Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

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De modo direto, Maria Martins é a única artista brasileira a integrar o grupo surrealista. Afeitos à busca do primitivo, os surrealistas beberam muito mais da fonte da Oceania do que da África ou da América pré-colombiana. O traço simplificado e a procura pela “origem” e os “instintos primeiros” estavam na pauta do grupo. Segundo a visão desses artistas, para o “homem primitivo”, os sonhos eram parte essencial da vida cotidiana. Nos primeiros trabalhos de Maria, a inspiração vem de assuntos brasileiros (tal como o samba) e de temas bíblicos (tais como Cristo, São Francisco e Salomé). Nessas esculturas, a figura humana, especialmente a feminina, surge robusta, sensual e dotada de linhas simplificadas. Já ao longo do percurso estético, suas mulheres tornaram-se “deusas e monstros” sem perder a sensualidade e o aspecto bárbaro.

Em sua mostra individual, na galeria Valentine, em Nova York, em 1943, seis esculturas da série Amazônia foram exibidas, sendo que a série completa foi exposta no ano seguinte na mostra Amazônia by Maria em conjunto com textos de autoria da artista sobre cada um dos personagens criados ali: cobra grande, iacy, boto, yara, yemanjá – as lendas amazônicas eram narradas pela escultora. Para muitos críticos, essa série tornou-se o ponto de clivagem de sua produção: o corpo, tido como fundamento, aparece em simbiose formal entre vegetais, animais e seres míticos. Da Yemanjá, por exemplo, ainda figurativa, percebem-se as mãos juntas aos seios, o acabamento da superfície áspero, com linhas escorridas como se fosse água, ao mesmo tempo em que está envolta por algas que interagem com seu corpo, ao emergir do rio.

A Soma dos nossos dias, 1954/1955, vem de uma série de obras nas quais a escultora explorou os esqueletos – aquilo que no organismo está adjacente ao inorgânico. Essas obras perdem a corporalidade, se comparadas às outras, e algumas delas lembram plantas ou espinhas dorsais

Num segundo momento de sua trajetória, após a convivência com Marcel Duchamp e as intensas trocas entre os dois artistas, Maria vivenciou na arte experiências mais introspectivas e incorporou questões biográficas em detrimento da busca pelas raízes brasileiras. A obra Não se esqueça nunca que eu venho dos trópicos, 1942, tem como título uma provocação – a lembrar de onde veio Maria. Em Impossível, 1944, duas figuras opostas (ou ainda o masculino e o feminino) estão frente a frente com seus tentáculos, uma sobre a outra – como se existisse um jogo de poder e de submissão entre as formas orgânicas. A superfície lisa das versões em bronze ou em gesso evidencia ainda mais a agressividade dos tentáculos. Nessas duas esculturas, a paixão parece ser tema central e ao seu redor a sensualidade e as dores de natureza feminina fornecem intensidade à peça. Maria ousou mostrar o desejo feminino; a sexualidade da mulher.
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Foto: Divulgação/MAC-USP

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A soma dos nossos dias
, 1954/1955 vem de uma série de obras nas quais a escultora explorou os esqueletos – aquilo que no organismo está adjacente ao inorgânico. Essas obras perdem a corporalidade, se comparadas às outras, e algumas delas lembram plantas ou espinhas dorsais. A soma de nossos dias é uma estrutura composta com 22 hastes finas e frágeis. A repetição dessas formas constrói uma espécie de coluna cervical, tendo na sua extremidade algo que se assemelha a um botão de flor ou uma vulva (alguns outros vêm mãos em prece). Apreciada por críticos de arte, à escultura já foram atribuídas diversas interpretações, entre elas: a espinha seria uma forma totêmica de um ritual misterioso sobre tempo e feminilidade; seria uma adaga que se projeta no espaço, marcando o tempo, o espaço e a memória e, ainda, cada haste não seria igual porque não é igual “à soma dos nossos dias”; acrescente-se também que para muitos estudiosos os espinhos seriam fálicos e, virada de cabeça para baixo, seriam as vértebras e a bacia feminina. Afinal, a linguagem abstrata de Maria permite as diversas compreensões da obra. Porém, é inegável: a peça trata do feminino.

Enfim, la femme du monde recebeu o reconhecimento internacional, tendo obras nos acervos do MoMA, do Museu de Arte da Filadélfia e de outros relevantes museus e coleções particulares; contudo, nacionalmente, sofreu críticas severas. Isto porque suas esculturas guardavam traços de um distante figurativismo e por não comporem a radical abstração em voga no Brasil dos anos de 1950 eram consideradas como algo superado na cena artística. Passados mais de 60 anos, a obra de Maria Martins tem sido alvo de releituras e novas abordagens. Recentemente, a exposição Maria Martins: Metamorfoses, ocorrida em 2013, com curadoria de Veronica Stigger, no MAM SP, e o documentário Maria, não se esqueça que eu venho dos trópicos, realizado em 2018, com direção de Francisco C. Martins e Elisa Gomes, revisam o percurso estético da escultora e nos trazem novos olhares. De fato, neste ano em que alguns museus dedicam sua programação à inserção da mulher na história da arte, as obras de Maria Martins são como comentários poéticos sobre a sexualidade feminina, a criação da vida e o tempo indelével.

Referências:

ALMEIDA, Flávia Leme. O feminino na arte e a arte do feminino: movimentos libertários do século. São Paulo: Editora UNESP, São Paulo, 2010. Disponível em books.scielo.org/id/mqk8h/pdf/almeida-9788579831188-05.pdf. Acesso em 25 mar. 2019.

ALVES, Andrea Cortez. “Maria Martins e a Bienal de São Paulo. III Bienal de São Paulo”. In: MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Um Outro Acervo do MAC USP. São Paulo: MAC USP, 2019.

Documentário Maria, não se esqueça que eu venho dos trópicos, 2018 (direção Francisco C. Martins e Elisa Gomes).

FARINA, Maria Silvia Eisele. Identidade e a arte de Maria Martins. São Paulo: PGEHA, 2008 (dissertação de mestrado).

Maria Martins: metamorfoses. Curadoria Veronica Stigger. São Paulo: MAM SP, de 10 de julho a 15 de setembro de 2013 (catálogo de exposição).

 

 


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