Jovens droga-adictos também praticam esporte e cuidam da própria saúde

Heito Pasquim é professor da Escola de Educação Física e Esporte da USP, Cassia Soares é professora da Escola de Enfermagem da USP

 15/12/2017 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 18/12/2017 as 11:26

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Heitor M. Pasquim – Foto: Arquivo pessoal

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Cassia B. Soares – Foto: Arquivo pessoal

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Existe uma série de falsas concepções que cercam o consumo de drogas, entre elas, a oposição entre o uso de drogas e a prática de atividade física e esportiva. Essas concepções estão de maneira muito disseminada na base de ações, programas e políticas preventivistas, que buscam implícita ou declaradamente substituir drogas por esporte. Um exemplo disso é a corrida Droga Mata & Esporte Salva, realizada na cidade de São Paulo há mais de dez anos.

Para essa falsa oposição, a prática de atividades físicas e esportivas seria capaz de predizer e proteger os jovens contra o risco de uso de drogas.   Frequentemente se dissemina que aqueles que são diagnosticados com – ou são acusados de – dependência química são indivíduos fragilizados, com a vida desestruturada, que não praticam esporte ou simplesmente não cuidam da própria saúde. Todavia, isso é muito questionável e não tem sustentação em prova científica.

Atualmente, o drogado é acusado pela sociedade por problemas por ela gerados e que ela não quer ou não consegue resolver. Temos disponíveis muitos subsídios provenientes da análise da realidade, que mostram uso mais problemático de drogas em situações de pobreza e carência de recursos de toda sorte, como também em consequência do mal-estar gerado por dinâmicas sociais atuais. Dessa forma, pode-se concluir com Gilberto Velho que o drogado é uma categoria de acusação. A generalização de que todos os consumidores de drogas são problemáticos perpetua o estigma sobre o usuário, endossa a criminalização da pobreza e a culpabilização da juventude. Generalizam-se informações sobre as drogas e sobre os usuários de drogas, com formas inadequadas e até mesmo grotescas de abordar o tema. Tal abordagem usa o exagero e o pânico social, revestidos da cientificidade do modelo biomédico, como estratégia para evitar que jovens experimentem drogas.

Existe uma série de falsas concepções que cercam o consumo de drogas, entre elas, a oposição entre o uso de drogas e a prática de atividade física e esportiva.

A maior parte das ações na área de drogas não se propõe a instrumentalizar indivíduos e grupos sociais para lidar com diferentes situações que envolvem drogas, senão combate o pequeno traficante varejista nas favelas e transfere de forma vertical informações predefinidas sobre os perigos das drogas, especialmente as ilícitas. Essas fórmulas proibicionistas vêm sendo criticadas no campo da saúde e principalmente no campo da saúde coletiva. Assim também têm sido amplamente criticadas na esfera jurídica.

Ademais, estudo divulgado recentemente no Jornal da USP adverte que não existe uma relação causal entre a prática de esportes e a prevenção ao uso de drogas entre jovens. Além disso, algumas atividades físicas e esportivas podem inclusive estar relacionadas a consumos pesados de drogas (“Esporte não afasta adolescentes do consumo de drogas, mostra estudo, Jornal da USP, 27/9/2017). Pode-se concluir, a partir dessas considerações, que a concepção que opõe drogas e esporte não resiste à análise crítica da realidade.

Na verdade, o antagonismo entre droga e esporte pode gerar frustrações em quem tenta responder a consumo problemático de drogas, marcando intensa simplificação da questão. Tal reducionismo pouco ensina e em nada favorece a compreensão da determinação social do problema droga.

O discurso da pretensa incompatibilidade entre drogas e esportes esconde ainda o fato de que usar drogas pode constituir em si uma vivência recreativa de lazer, compondo o rol de atividades físicas e esportivas, o que foge do escopo do uso problemático.

Destaca-se que o lazer no capitalismo assume destaque na reposição da força de trabalho explorada. Nesse sentido, a sociedade capitalista generalizou o mal-estar social e, atualmente, patrocina uma solução aliviadora dele. Faz isso através de um tempo de lazer alienado, burocratizado e pobre – do ponto de vista da emancipação humana (com ou sem drogas).

É inegável que a atividade física e esportiva é dotada de enormes potências. No entanto, ela não faz milagre porque não acontece à parte das demais dinâmicas sociais. No Brasil, a atividade física e esportiva está marcada pela desproteção e pela insegurança social, instrumentalizada para fins de afastamento dos jovens das drogas ou de inserção social por meio do oferecimento de uma opção de trabalho aos jovens pobres.

Recentemente outras experiências de cuidado se desenvolveram em conjunto com estratégias de redução de danos, e orientam-se para a perspectiva antiproibicionista.

Os programas focalizados em ações fragmentadas e compensatórias são sustentados pela velha retórica da guerra contra as drogas e pela perspectiva proibicionista. Apesar de parte da comunidade política e dos meios de comunicação de massa reivindicá-los como instrumentos de prevenção, é possível perceber que, nesse formato, eles respondem, em grande medida, apenas à demanda por ocupação de tempo, e assim favorecem a institucionalização de jovens pobres e periféricos em serviços que oferecem práticas controladoras.

Recentemente outras experiências de cuidado se desenvolveram em conjunto com estratégias de redução de danos, e orientam-se para a perspectiva antiproibicionista. Nesta direção, pesquisadores e trabalhadores da área de drogas têm desenvolvido de forma inovadora ações educativas, que compõem com estratégias de redução de danos e que evidenciam o direito de todos ao lazer, em serviços de saúde mental, álcool e outras drogas e/ou em cenas abertas de uso.

Em estudo anterior, que analisou o potencial educativo do lazer, identificamos a oficina de lazer, de perspectiva emancipatória – atividades pedagógicas em grupo que proporcionam a troca de saberes e o encontro em processo coletivo de formação cíclica e participativa, como estratégias privilegiadas para gerar experiências autênticas, criativas e, principalmente, problematizadoras da realidade. A problematização do cotidiano de consumidores põe em xeque concepções reificadas na sociedade, revê práticas e promove mudanças na direção emancipadora.

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