Jerusa Pires Ferreira, da escrita do mundo à cultura das bordas

Marisa Midori Deaecto é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 23/04/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 24/04/2019 as 14:55

Marisa Midori – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

“Viajo segunda-feira

Feira de Santana…

Mas se eu trouxer de volta

O desencontro choroso

Da missão desincumprida

Devolvo seu envelope

Intacto, certo e fechado

Odeio disse-me-disse,

Condeno a bisbilhotice”

(Tom Zé)

Jerusa de Carvalho Pires Ferreira – Foto Cecília Bastos / USP Imagens

Jerusa Pires Ferreira nasceu em Feira de Santana (BA), em 1938. Para o viajante que parte do sertão das Minas em direção a Salvador, passando por Governador Valares, Vitória da Conquista e Jequié, Feira de Santana se apresenta como uma campina aberta, de ruas bem traçadas, que ostenta no nome sua função primordial: o trato de víveres e de toda sorte de mercadorias que liga o sertanejo à cultura do litoral. E vice-versa.

Assim era Jerusa, uma figura circular. Transitava com elegância e inteligência entre uma borda e outra: da fina cultura europeia, aprendida no lar, sem, todavia, desprender-se dos cheiros, dos sons, das cores e das gentes que viviam ao seu redor. Sua conversa era circular, tanto quanto sua escrita. Pois nada lhe escapava. Sua prosa transitava, com a mesma leveza e interesse, de um conto de Púshkin, que acabara de ler, empolgada, às versões escritas e transcritas daquela mesma referência para o cordel, respeitando, agora, a musicalidade, o acento e o enredo próprios do sertão. E se a tarde se tornasse verdadeiramente inspiradora, não demorava a empunhar seu batom e partir para uma roda de conversa e música entre os jovens. Era quando a fênix renascia…

A vida acadêmica se desenrolava com a mesma alegria e inteligência. Como semioticista consagrada, circulou em diferentes mundos da escrita e do oral, do sertão à pradaria. Traduziu e difundiu entre nós o pensamento de seus grandes amigos e parceiros intelectuais: Paul Zumthor e Henri Meschonnic. Foi uma professora generosa, como pude testemunhar, algumas vezes, em seu apartamento. Era prazeroso ver o brilho nos olhos daqueles jovens que se sentavam ao seu redor, ávidos por suas histórias. Jerusa era uma prosadora cheia de encantos!

Considero-me sua herdeira no curso de Editoração da ECA-USP, onde ela lecionou por muitos anos. Não o digo por vaidade, mas pelo sentido de responsabilidade que essa consciência – ou desejo – em mim logo se despertou. Jerusa legou para o curso o compromisso com a formação humanística, sem regateios e economias. Um princípio que sobrevive e norteia a formação dos jovens editores egressos de nossa graduação. O respeito ao profissional do livro e a consciência de que um bom projeto editorial tem efeito multiplicador na sociedade traduz-se, de forma concreta, na Coleção Editando o Editor, por ela criada e que subsiste até nossos dias. Com projeto editorial simples, porém, elegante, cada um desses volumes encerra a palavra de editores que, por seu empenho e por sua liberdade, deixaram suas marcas no mercado editorial brasileiro.

Circularidade e liberdade são palavras, enfim, que traduzem o espírito dessa grande intelectual. A sua vida e a sua escrita se nutriam dessa capacidade de ver e de sentir ao longe, muito longe. O seu mundo era vasto, generoso, descomplicado. Jerusa tinha voo de águia. Era um exemplo para todos nós.

Jerusa Pires Ferreira nos deixou em pleno domingo de Páscoa. Libertou-se de tudo. Guardo com saudade aquele sorriso largo, sincero, acolhedor. O sorriso de Jerusa. E guardo, também, com todo carinho, aquele batom que ela me deu. Obrigada, Jerusa.

 


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