Impenhorabilidade e responsabilidade patrimonial no anteprojeto de reforma do Código Civil

Por Paulo Eduardo Frederico, doutorando da Faculdade de Direito da USP

 Publicado: 04/09/2024 às 18:21
Paulo Eduardo Frederico – Foto: Arquivo pessoal
Em sua proposta de alteração na legislação aplicável à responsabilidade patrimonial de devedores pelo inadimplemento, em especial no tocante à regulação dos bens impenhoráveis, o anteprojeto de reforma do Código Civil prevê a inclusão do art. 391-A, com a seguinte redação:

Redação proposta no anteprojeto
Art. 391-A. Salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor.
§ 1º Além do salário-mínimo, a qualquer título recebido, bem como dos valores que a pessoa recebe do Estado, para os fins de assistência social, considera-se, também, patrimônio mínimo, guarnecido por bens impenhoráveis:
I – a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio;
II – o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família;
III – a sede da pequena empresa familiar, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família;
§ 2º Considera-se bem componente do patrimônio mínimo da pessoa deficiente ou incapaz, além dos mencionados nas alíneas do parágrafo anterior, também aqueles que viabilizarem sua acessibilidade e superação de barreiras para o exercício pleno de direitos, em posição de igualdade.
§ 3º A casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família.

A redação do art. 391-A, conforme proposta no anteprojeto, traz um rol muito mais restrito de proteção dos bens do devedor quando comparado ao rol indicado atualmente nos incisos I a XII do art. 833 do CPC. Em razão da ausência de previsão no anteprojeto de revogação total ou parcial do art. 833 do CPC, a proposta tem o potencial de trazer grande insegurança jurídica.

A proposta de criação do art. 391-A vem acompanhada da sugestão de uma pequena mudança na redação atual do art. 391 do Código Civil:

Redação atual
Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

Redação proposta no anteprojeto
Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor, suscetíveis de penhora.

A alteração proposta resume-se à inclusão da locução adjetiva “suscetíveis de penhora”. No mérito, trata-se de uma inclusão coerente com a interpretação doutrinária e jurisprudencial do art. 391, que já era interpretado de modo a se considerar a ressalva existente no art. 789 do CPC/2015 e, anteriormente, no art. 591 do CPC/1973.

Vale destacar, no entanto, a ausência de qualquer justificação referente às propostas destacadas. O tema não é apenas ignorado na justificação que acompanha o relatório final do trabalho da comissão, como sua regulação foge aos princípios expostos no primeiro parágrafo da justificação das alterações propostas no livro de obrigações. Nesse sentido, a justificação aponta os dois seguintes princípios: (a) respeito aos princípios de eticidade, de socialidade e de operabilidade; e (b) atualização apenas do necessário. Assim sendo, mostra-se compreensível a proposta de alteração da redação do art. 391, cuja interpretação doutrinária já apontava a inclusão da ressalva proposta, mas não a criação do art. 391-A, matéria atualmente regulada pelo CPC e por leis especiais.

No relatório parcial da subcomissão de obrigações, concluído em 14 de dezembro de 2023, encontra-se a justificação da alteração proposta na redação do art. 391, em consideração ao fato do devedor não responder com todos os seus bens, tal como parece implicar a redação atual do artigo, mas não constava ainda a proposta de criação do art. 391-A.

A sugestão de criação do art. 391-A surge com o relatório geral, de 26 de fevereiro de 2024. Pela análise da tabela comparativa disponibilizada pela comissão, é possível perceber que a proposta de criação desse artigo não constava na redação proposta pela subcomissão nem de qualquer emenda, sendo obra da relatoria-geral. Essa sugestão se mantém na emenda nº 60, de 8 de março de 2024, cuja autoria foi apontada como de consenso dos membros da subcomissão com a anuência dos relatores-gerais.

Salário-mínimo

Entre as propostas destacadas, sobressai a regulação a respeito da impenhorabilidade do salário-mínimo. O anteprojeto propõe (art. 391-A, § 1º) a intangibilidade do salário-mínimo recebido a qualquer título contra atos de excussão do credor. Assim, a contrario sensu, os rendimentos superiores a um salário-mínimo não teriam a mesma proteção e, a priori, poderiam ser atingidos por atos de excussão do credor, ou seja, poderiam ser penhorados. Vale destacar que atualmente, conforme disposto no inciso IV e no § 1º do art. 833 do CPC, os diversos tipos de rendimentos do trabalho (vencimentos, salários, aposentadorias etc.) são impenhoráveis por expressa disposição legal até o valor correspondente a 50 salários-mínimos mensais.

Por mais que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) venha adotando uma interpretação contra legem do art. 833 do CPC, mitigando a impenhorabilidade dos rendimentos do trabalho desde que seja assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família, a proposta contida no anteprojeto não se limita a positivar o entendimento jurisprudencial. A mitigação atualmente permitida pela jurisprudência do STJ é vista em caráter excepcional e transfere ao credor o ônus de demonstrar a necessidade de se afastar a regra geral de impenhorabilidade. A redação proposta tem consequência muito distinta, pois parte da penhorabilidade do valor que exceder um salário-mínimo, cabendo ao devedor, teoricamente, demonstrar que eventual penhora de parte de seus rendimentos não permitiria a manutenção de um patrimônio mínimo existencial, conforme disposto no caput.

Casa de morada

No que diz respeito à proteção ao bem de família, em especial ao imóvel de residência da família, foram propostas grandes alterações. No caso do inciso I do art. 391-A, propõe-se que a casa de morada seja intangível aos atos de excussão do credor apenas se única no patrimônio do devedor.

Essa mudança vem acompanhada da proposta de revogação dos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil, correspondentes ao subtítulo dedicado ao bem de família convencional. Da mesma forma, propõe-se a revogação dos artigos 260 a 265 da Lei nº 6.015/1973 (LRP), dedicados aos procedimentos necessários para a instituição do bem de família convencional.

Não há, no entanto, qualquer referência à Lei nº 8.009/1990, responsável pela proteção conferida ao bem de família legal, que convive com a proteção conferida pelo Código Civil ao bem de família convencional. Assim sendo, a proposta novamente tem o potencial de ser fonte de grave insegurança jurídica em um tema especialmente delicado.

Na redação proposta para o art. 391-A não se encontra a expressão “bem de família”. Seria, a priori, plausível discutir se a regulação proposta referente à intangibilidade da casa de morada seria aplicável tanto ao bem de família convencional quanto ao bem de família legal. Entretanto, a proposta não pode ser compreendida como limitada às disposições atuais de proteção ao bem de família contidas no Código Civil, ou seja, ao bem de família convencional, pois se propõe a revogação das disposições a esse respeito. Logo, não haveria mais distinção entre o bem de família legal e convencional, pois este último deixaria de existir. Ao mesmo tempo, sua aplicação ao bem de família legal seria discutível, pois o anteprojeto não inclui a revogação da Lei nº 8.009/1990, especialmente dedicada ao bem de família.

Por fim, vale destacar o disposto no § 3º do art. 391-A como proposto no anteprojeto. Trata-se da inclusão da possibilidade de afastamento da impenhorabilidade mesmo contra a regra geral do inciso I do § 1º (casa de morada única no patrimônio do devedor) em caso de casa de alto padrão.

Ao adotar um conceito jurídico indeterminado e sem definição doutrinária ou jurisprudencial (casa de alto padrão), o anteprojeto traz novamente insegurança jurídica em um tema sensível. Além disso, a proposta de que a casa de alto padrão poderia ser excutida até metade de seu valor atenta contra a equidade e a isonomia. Pensemos no seguinte exemplo: em uma situação concreta, uma casa de alto padrão poderia ser avaliada em R$ 10 milhões, a proteção nesse caso seria de R$ 5 milhões, valor que seria usado pelo devedor para a compra de outro imóvel, em princípio impenhorável; em outra situação, um devedor poderia ser proprietário de uma única casa de R$ 5 milhões, igualmente de alto padrão, mas sua proteção seria limitada a R$ 2,5 milhões. Nos exemplos, percebe-se como o devedor com uma casa de maior valor obteve uma proteção superior ao devedor com uma casa de menor valor, desde que ambas englobadas pelo conceito jurídico indeterminado de casa de alto padrão.

Constitucionalidade e segurança jurídica

Como é possível notar, o anteprojeto de reforma do Código Civil prevê grandes mudanças na disciplina da responsabilidade patrimonial de devedores, em especial no tocante à intangibilidade de certos bens aos atos de excussão do credor, ou seja, aos bens que a lei considera impenhoráveis.

A constitucionalidade de parte das propostas é discutível, pois, considerada a letra fria da lei nos termos propostos, não haveria em muitos casos preservação do mínimo patrimonial indispensável ao devedor e a sua família, em desacordo com o princípio da dignidade humana e do devido processo legal. Nesse sentido, mostra-se especialmente sensível a restrição da proteção a um salário-mínimo.

Além da discussão quanto à constitucionalidade de parte das propostas, destaca-se a potencial insegurança jurídica em razão da convivência de normas em sentido distinto às quais o projeto não fez qualquer referência. Seriam mantidas as impenhorabilidades previstas no CPC e na Lei nº 8.009/1990?

A inclusão do art. 391-A no Código Civil também é discutível, pois as normas que estabelecem as impenhorabilidades são vistas como limitações políticas à execução forçada, sendo integradas no quadro do devido processo legal. Por essa razão, mostra-se mais adequada sua regulação pela legislação processual.

De modo a evitar riscos à segurança jurídica em um tema especialmente sensível, que não consta da justificação do anteprojeto em seu relatório final, seria mais adequada a supressão das propostas.

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