Iconografia como memória

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira no curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes-USP

 16/02/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 19/02/2018 as 17:34

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Jean Pierre Chauvin – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Quem tomou contato com a obra de Ubiratan Machado reconhece nele um dos maiores pesquisadores de nosso tempo. Bastaria mencionar A Vida Literária no Brasil durante o Romantismo (Eduerj, 2001), Machado de Assis: Roteiro da Consagração (Eduerj), A Etiqueta de Livros no Brasil (Oficina do Livro[1]/Edusp) – ambos publicados em 2003 – ou História das Livrarias Cariocas (Edusp, 2012), para constatar que o autor pertence a uma geração de intelectuais que, para além da abrangência do que estuda e a seriedade com que conduz o seu trabalho, não se encaixa (felizmente) na categoria, por vezes superestimada, dos microespecialistas.

O leitor não se engane. O subtítulo (1820-1850) diz menos do que vai no volume. A frase inicial é reveladora: “A história do livro no Brasil começa em 1747”, pelas mãos de Antônio Isidoro da Fonseca, um “tipógrafo português”. Como se sabe, após a chegada da família real ao País, em janeiro de 1808, a prensa tipográfica fica a serviço praticamente exclusivo do Império – situação que perdurou até a década de 1820, quando “o livro brasileiro ganha cara nova”, com a introdução das “prensas de metal”.

Na década seguinte, as edições passam a outro estágio, graças ao “emprego de cores vivas na capa (em especial, o azul e o verde) […] em substituição aos tons negros”. Ubiratan Machado vincula a mudança de teor gráfico com o advento do ultrarromantismo e “a afirmação do romantismo, expressa a partir da simbologia das vinhetas”. Esse estado de coisas durou até meados do Oitocentos. As autopublicações, disseminadas nos últimos anos do século XX, guardam vínculo com as “edições por conta própria, muitas vezes queimando suas minguadas economias”, durante o Oitocentos.

A disputa por um lugar ao sol, no disputado (e acanhado) mercado livreiro, elegera a francesa Garnier como a meca editorial dos escritores nacionais: “Até a década de 1860, as edições Garnier de autores nacionais impressas no exterior são seletivas, restritas aos intelectuais mais em evidência”. O editor também se aventura nos periódicos, como foi o caso da Revista Popular, inaugurada em 1859, e metamorfoseada em Jornal das Famílias, três anos depois. O público-alvo era predominantemente feminino. De certa forma, jornais e revistas dessa natureza tinham caráter didático: pretendiam introduzir hábitos europeus, travestidos em indumentária, acessórios e objetos domésticos, inclusive a tela de bordar, o canapé e o piano.

Sintoma de uma sociedade que passa a se enxergar como parte de um mundo em modernização (ainda que fundado no regime escravocrata), o “bando de ideias novas”, aportado na década de 1870, coincide com a introdução de capas ilustradas: “inovação [que] agrada ao leitor e envaidece o editor, ciente de apresentar edições em consonância com os progressos do século”. Dentre outros fatores sugestivos, o período é marcado pela aparição da capa dura.

Na década seguinte, novas estéticas literárias questionam as convenções adotadas pelos românticos. Ubiratan Machado sugere que a nova orientação em literatura convirja para manifestações contrárias ao relativo monopólio da Garnier. O pesquisador assume tom irreverente, ao questionar os limites estéticos do Romantismo: “A insatisfação também se revela no panorama artístico, em especial na literatura, onde sobrevivem muitas notas de romantismo babão”. A Tipografia Nacional desponta no mercado editorial, com “uma equipe de artistas gráficos de excelente nível”.

Ubiratan Machado sinaliza para o fato de que, durante o Naturalismo, a sobriedade das capas contrastava com o teor, tido como polêmico, das obras. Esse estado de coisas seria abalado pela terceira edição de Casa de Pensão. “Lançado em 1884, o livro reconstitui com arte e crueza um acontecimento bombástico ocorrido no Rio de Janeiro, consagrando Aluísio Azevedo […]. A capa da terceira edição, dos editores Faro & Lino, em estilo impressionista, se caracteriza pela ousadia, o tom de desafio à sociedade. Nela, Raul Pompeia apresenta uma mulher nua, de costas (ainda falta coragem para o nu frontal)”.

O leitor não se engane. O subtítulo (1820-1850) diz menos do que vai no volume. A frase inicial é reveladora: ‘A história do livro no Brasil começa em 1747’, pelas mãos de Antônio Isidoro da Fonseca, um ‘tipógrafo português’.

A década seguinte foi marcada pela literatura erótica, que atraiu a pena de escritores de renome, já em sua época, como Coelho Neto, Olavo Bilac etc. “Os capistas, mais realistas do que o rei, em geral procuram exagerar o toque de escândalo ou de malícia.” Dentre as obras mais populares, naquele período, o destaque fica para o Álbum de Caliban (pseudônimo shakespeariano adotado por Coelho Neto) e A Mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo. Dentre os capistas de renome, um dos mais reconhecidos, àquela altura, foi Julião Machado, “com seu desenho fino, de gosto e influência francesa”.

Durante o final do século XIX, coexistem capas dos livros com propósitos bem diversos. O caráter algo malicioso e a intenção provocativa dos admiradores de Émile Zola cedem o passo à “delicada espiritualidade e exotismo simbolista”. Ao lado de desenhos com motivos etéreos, frequentemente em alusão ao uso de substâncias entorpecentes, há constante alternância entre motivos e retratos, o que se estende até o início do século XX: “A presença simbolista chega lépida e fresca à década de 1920, na obra de jovens como Murilo Araújo, capista de seu livro de poemas A Cidade de Ouro (1921), homenagem alegórica ao Rio de Janeiro, cidade feminina e sensual”.

Entre 1910 e 1930, as livrarias voltam a investir maciçamente nas capas ilustradas, como forma de atrair “o olhar curioso dos passantes”. É no contexto de voyeurismo e superficialidade que tanto o cronista João do Rio quanto as personagens filosóficas de Lima Barreto se contrapõem à “futilidade e ao mundanismo”, simbolizados pela presença do automóvel e impingido pelas reformas arquitetônicas de Pereira Passos. Como acontece ainda hoje, a opinião pública se dividia entre a crença cega no progresso material e a desconfiança dos planos de reurbanização.

A década de 1920 é marcada pela introdução de fotos, a preencher as capas. Desde os anos de 1910, a literatura se aproxima do humor, como forma de estimular o sorriso crítico, diante das arbitrariedades e contradições da elite política e cultural. Os traços do art nouveau revezam-se com a proliferação de caricaturas e/ou retratos dos próprios autores. Há espaço, inclusive, para obras de mistério, como O Moinho de Sangue, assinado por Gil d’Amasio. Na capa, em três cores, carrega-se o vermelho, a colorir as pás do moinho e a gotejar em direção ao título (igualmente rubro). Já o art déco foi cultivado por Jefferson, “discípulo de J. Carlos”, como se vê na capa do romance Histórias de Bonecos, de Benjamin Costallat.

Ubiratan Machado revela que, apesar do alcance das ilustrações, “a capa tipográfica continua predominando na produção editorial brasileira […], com destaque para o desenho das letras”. Nesse contexto, sobressai o trabalho de alguns capistas notórios em seu tempo, como Raul Pederneiras, Kalisto – representantes de uma “geração inquieta e contestadora surgida após a República” – e Fernando Correia Dias, um ilustrador português que produzia “arabescos alucinantes, no contraste de cores das letras e fantasia” e deixou cerca de cinquenta desenhos no espaço de vinte anos. A seu lado, destaca-se a proeminente figura de J. Carlos, que teria feito “mais de cinquenta mil desenhos”, muitos deles a ilustrar capas contestatórias ao governo do país.

Os anos que fermentaram os diversos modernismos, num país em surtos de industrialização (em São Paulo, Rio de Janeiro, Belém etc), também viram se consolidar o nome do editor e escritor Monteiro Lobato, que projetou os desenhistas Voltolino e Juvenal Prado – dois expoentes da caricatura, no período. De estilo inovador, uma das capas mais impressionantes, nos anos 20, foi a de Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade (concebida e ilustrada por Guilherme de Almeida), que suscitou “a ira dos conservadores, que chegam a compará-la com a capa de um manual de tintureiro”.

Outra capa bastante representativa das tensões que dominavam o cenário intelectual paulistano é Pau Brasil, de Oswald de Andrade, em que o lema comtiano “Ordem e Progresso” (em voga, novamente, desde 2016) foi substituído pelo título, em letras garrafais, do volume. Ao lado dos trabalhos estilizados de Mário e Oswald, surgiram ilustrações de gosto (hoje) duvidoso, como a de Era uma Vez, do poeta Guilherme de Almeida; a “coleção Os mais Belos Poemas de Amor, da Companhia Editora Nacional” e a(s) “Coletânea(s) de Poemas de Amor”, representada por Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Raimundo Correa, Renato Travassos, Vicente de Carvalho e Adelmar Tavares, entre outros. O cultivo da forma poética, entre os parnasianos, teria reverberado nas capas geométricas, retilíneas?

Antes de aparição dos romances de 30, há que se mencionar as obras de Paulo Setubal, ilustradas por Walsh Rodrigues, em que “os bandeirantes paulistas barbudos” conferiam “uma aura de heroísmo, uma certa pompa e a idealização peculiar a qualquer desenho de reconstituição histórica”. No País conviviam tanto a paródia dos símbolos nacionais, quanto a obsessão pelo nacionalismo tacanho, em dicção francamente moralista, como se constata nas obras da editora Hélios – “alto-falante do movimento Verdeamarelo”, que veiculou obras de Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia (adeptos do integralismo, no País).

Naquele período [1940], ‘o livro brasileiro ganha um novo componente, a sobrecapa, também chamada de jaqueta’ (jacket), que contou com as ilustrações do haitiano André Le Blanc.

O espaço será pequeno para mais contar. Mas devem-se mencionar, ainda, a produção de Di Cavalcanti, Santa Rosa, Luiz Jardim, Raul Brito, Guilherme Salgado, George Blow, Ernst Zeuner, Geraldo de Castro, J. U. Campos, entre muitos outros, que legaram capas de traços peculiares, como se tivessem sido escolhidos justamente para dialogar com autores do porte de José Lins do Rego, Rachel de Queirós, Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Gilberto Freyre, Antônio de Alcântara Machado, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Octavio de Faria, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Dionélio Machado, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Érico Veríssimo etc.

Isso, sem contar as numerosas capas a ilustrar traduções, dentre as quais os desenhos sombrios e em cores fortes de Adão Kuwer – que assinou dezenas de trabalhos para a Coleção Amarela, incluindo romances de Agatha Christie, Edgar Wallace, William Irish e Ellery Queen, durante a década de 1940.

Naquele período, “o livro brasileiro ganha um novo componente, a sobrecapa, também chamada de jaqueta” (jacket), que contou com as ilustrações do haitiano André Le Blanc. Na transição para a década seguinte, destacam-se os numerosos trabalhos de Enrico Bianco, em romances cujos títulos sugerem a temática amorosa e sexual. É sugestivo que os romances de Marques Rebelo (Marafa e A Estrela Sobe) tenham passado pelas mãos do desenhista.

Sem perder a dimensão teórica nem descuidar do plano histórico, Ubiratan Machado empreende análises marcadas pela perspicácia, leitor sensível e agudo que é. Sob esse aspecto, A Capa do Livro Brasileiro é um desses raros fenômenos no mundo editorial, em que o vasto panorama cultural casa-se à erudição e ao juízo bem fundamentado sobre o material em exame. Isso porque o abrangente painel bibliográfico, discutido no volume, vem lastreado pelo trabalho meticuloso e disciplinado, característico dos livros fora de série. Esses elementos também contagiaram a disposição do volume: chama atenção o índice remissivo, que soma milhares de entradas, a orientar e facilitar o trabalho do consulente.

Haveria muito mais a discorrer. Mas, dizendo o menos, que o silêncio desloque o leitor dessas parcas linhas até a livraria mais próxima. Tomar contato com A Capa do Livro Brasileiro constitui grata experiência sensorial, provida de palavra, imagem e história. Trabalhos desse porte, realizados com tamanha disciplina e fôlego, cumprem muitos papéis – dentre os quais, sublinhar a posição e relevância do pesquisador e reivindicar os merecidos espaços para o livro impresso e os sujeitos empenhados e comprometidos com a nossa memória textual e iconográfica. Haverá melhor antídoto contra a reprodução do senso comum?

 

 

Serviço:

Ubiratan Machado. A Capa do Livro Brasileiro (1820-1950). Cotia: Ateliê Editorial, São Paulo: SESI-SP Editora, 2017, 664 págs.

 

[1]     O livro contou com a intensa colaboração de Cláudio Giordano, então coordenador da Oficina do Livro.


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