Governos não são eleitos para insultar educadores

Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 20/02/2020 - Publicado há 4 anos
José de Souza Martins – Foto: Marcos Santos / USP Imagens
A publicação de uma lista da Secretaria de Educação de Rondônia com a determinação de recolhimento de 43 obras literárias destinadas às escolas, nos põe em face de orientações de governo que pedem análise e preocupação. Na objeção política ao livro e à leitura, no Brasil, que esse ato representa, é a civilização que está sob ataque com a chegada ao poder da mentalidade do desmonte do Estado brasileiro. Por aí, os eleitos de 2018 dão indicações de que supõem que, ao elegê-los, o povo abriu mão de seus direitos e conquistas como nação. Tudo vai se tornando revogável.

Não se trata de um evento de província, que nem por isso seria menos grave. Trata-se de desdobramento da guerra interna à erudição, declarada em diferentes atos de governo, como quando há semanas o próprio presidente sentenciou que os livros didáticos têm palavras demais. No seu governo, os livros serão, pois, instrumentos de minimização da cultura.

Governos não são eleitos para insultar educadores ou menosprezar cientistas ou desfazer as conquistas culturais e civilizatórias de um país. O governo atual não foi eleito para revogar o que somos no que de melhor temos. Protege-se no silêncio cúmplice da maioria.

As evidências que surgem nos diferentes setores do poder atual mostram que o regime de 1º de janeiro de 2019 funciona como um corpo invisível. É regulado por contaminação e identidade de propósitos que reúne os dispersos e frágeis na formação de um ser coletivo servil e cúmplice. Os absurdos de Brasília infiltram-se nos poros de Porto Velho e do país inteiro.

O governo de Rondônia filiou-se ao mesmo espírito da objeção presidencial antipedagógica, interpretou-a e ampliou-a. Entendeu que os livros arrolados fossem vetados e afastados dos estudantes. No veto, foi usado o pretexto de terem “conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”. Dentre os autores visados pela medida kafkiana, estão Machado de Assis, o maior escritor brasileiro (fundador da Academia Brasileira de Letras), Mário de Andrade (da Academia Paulista de Letras), um dos pais do nosso modernismo, Euclides da Cunha (da ABL), Ferreira Gullar (da ABL), Rubem Fonseca, Carlos Heitor Cony (da ABL), Nelson Rodrigues, Edgar Allan Poe, Franz Kafka.

Interpelada, a Secretaria da Educação de Rondônia tentou minimizar as providências não consumadas, mas vazadas. O fato, porém, de que funcionários tenham se sentido autorizados a tomar a medida obscurantista é uma indicação de que a intolerância política e o autoritarismo estão de prontidão. À menor distração, podem invadir e ocupar nossos espaços de expressão e de liberdade.

A secretaria argumentou que recebera denúncia de que um dos autores censurados, Rubem Fonseca, usa palavrão em suas obras. Aqui, porém, não raro, quem não fala, pensa em palavrão. Nestes dias, o presidente fez para jornalistas o gesto impróprio e obsceno da banana, com o braço. Na linguagem gestual dos moleques de rua esse é o palavrão dos palavrões. Os repetidores de sinais do poder veem os palavrões dos outros, mas não os de sua própria cultura de botequim.

Não é o caso, mas no Brasil e em Portugal palavrão tem a função de ponto de exclamação falado. Seria falso e hipócrita negar importância literária ao modo como nos expressamos na vida, quando o palavrão indica a prioridade do que sentimos em relação ao que pensamos. Já os governantes estão obrigados a pensar antes de falar e antes de fazer. Caso contrário, ficam aquém da função que exercem.

A medida esboçada, em Rondônia, vai além e destaca em rodapé a recomendação: “Todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos”. Está aí a impressão digital do sujeito oculto da delação. Rubem Alves foi educador respeitado, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que lhe reconheceu a competência e os serviços à educação do povo brasileiro ao lhe conceder o título de seu Professor Emérito.

Ele foi pastor presbiteriano em Lavras (MG), formado pelo Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, filósofo, teólogo protestante renomado. Fez doutorado no Seminário Teológico de Princeton, nos EUA, com uma tese original e renovadora de grande repercussão, sobre Teologia da Esperança. Poeta, era também autor de livros infantis.

Como aconteceu com outros membros de várias igrejas protestantes e evangélicas no regime militar, Rubem Alves foi perseguido dentro de sua própria igreja. Seu pensamento social e educacional teve a envergadura de pensamento crítico e de questionamento da pastoral da subjugação e do silêncio em relação às questões sociais e do trabalho. Pastoral que dominou igrejas que sucumbiram à tentação da teologia da prosperidade, a teologia do individualismo alienante.

Esse artigo foi originalmente publicado no jornal Valor Econômico em 14/02/2020

 

 


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