Flávio Migliaccio, artesão de personagens

Por Ferdinando Martins, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 08/05/2020 - Publicado há 4 anos
Ferdinando Martins – Foto: Arquivo pessoal
A morte do ator Flávio Migliaccio na última segunda-feira (4/5) surpreendeu a classe artística em todo o País. Vivendo a crueldade de uma pandemia que já matou mais de 6 mil brasileiros, assolados por uma crise econômica e política que aumenta a sensação de incerteza, vulnerabilidade e precariedade, a notícia entristeceu pessoas ligadas às artes cênicas em suas diferentes modalidades, acrescentando uma dor a mais, aguda, inesperada e repentina.

Mesmo tendo sido, também, produtor, diretor e roteirista, foi como ator que se consagrou e construiu seu legado mais expressivo. No ano passado, ele ganhou o prêmio de melhor ator de televisão pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, por sua interpretação do personagem Mamede Al Aud em Órfão das terras, da Rede Globo. É provável que o grande público se lembre dele por seus personagens cômicos na televisão, como o Seu Chalita Al Aragón, da série Tapas e beijos, em que contracenava com as atrizes Fernanda Torres e Andréa Beltrão, ou como o indiano Karan Ananda, na telenovela que marcou época Caminho das Índias, ambas na Rede Globo.

Em uma consulta rápida na Internet, Flávio Migliaccio aparece como o Tio Maneco dos filmes Aventuras com Tio Maneco e Maneco, o super tio, filmes que ele escreveu, dirigiu e atuou no início da década de 1970, com grande êxito comercial e destaque para a inserção de cenas de desenhos animados criados por Ely Barbosa e caricaturas do protagonista feitas por Ziraldo.

A obra e o legado de Flávio Migliaccio, porém, é bem mais ampla e densa, atravessando toda a segunda metade do século XX até os dias de hoje, em experiências e propostas estéticas diversas. Se em 1971 ele fazia sucesso no cinema com uma comédia de apelo popular, pouco antes havia sido ele mesmo um homem do povo no clássico do cinema novo Terra em transe, filme de Glauber Rocha estreado em 1967. No âmbito do cinema novo, ele também participou do projeto Cinco vezes favela e de A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. Em sua fase popular, chegou a dirigir um filme dos Trapalhões (Os Trapalhões na terra dos monstros, 1989), entre outras atuações e participações.

Foi nos palcos, porém, que Flávio Migliaccio se formou e cuja contribuição já é parte dos cânones do teatro brasileiro. Em uma época que o teatro era passatempo e verniz civilizatório para a elite paulistana, oriunda dos auspícios de industriais abastados de origem estrangeira, Flávio Migliaccio teceu sua trajetória na contramão. Nascido no Brás em 1934, em uma família de 17 filhos, trabalhou como balconista e mecânico. Começou no teatro amador muito jovem, em uma igreja no Tucuruvi.

Aos 20 anos, fez um curso com o diretor italiano Ruggero Jacobbi e ingressou, como ator profissional, no recém-criado Teatro de Arena, antes da efervescência da cultura brasileira depois do golpe de 1964 até o AI-5, no período de gestação e formação da companhia. Lá, atuou em clássicos da dramaturgia brasileira como A revolução na América do Sul, de Augusto Boal, Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho. Pertencer ao Teatro de Arena significava participar de uma transformação inédita na cena brasileira, em busca de um realismo autêntico e autóctone, com autores brasileiros e formas de interpretação mais soltas, menos impostadas. Flávio Migliaccio foi peça-chave na caracterização de tipos brasileiros, uma transformação radical e que deu voz à dramaturgia escrita no País.

Naquela época, o teatro paulistano orbitava ao redor de três núcleos principais. Além do Teatro de Arena, o Teatro Brasileiro de Comédia – marco da modernização da cena brasileira – vivia sua debacle, e o Teatro Oficina vivia uma espécie de gestação de suas tensões, que eclodiriam no final da década com a montagem de O rei da vela, de Oswald de Andrade. Simbolicamente, por um arranjo do destino, Flávio Migliaccio trabalhou em duas montagens no TBC (Almas mortas, de Nikolai Gógol, e A escada, de Jorge Andrade, ambas dirigidas por Flávio Rangel) e também marcou presença no Teatro Oficina, em Andorra, de Max Frisch, direção de José Celso Martinez Corrêa.

Ator de amplo espectro, Flávio Migliaccio navegou por linguagens e públicos distintos. Sua contribuição maior foi a artesania de personagens, construídos com cuidado, estudo, pesquisa. Em uma época de estéticas pré-fabricadas por algoritmos e aplicativos, sua ausência será sentida, mas o eco de seu trabalho ainda tem grande potência para ressoar por muito tempo.


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