Flávio Cerqueira e nossas memórias exiladas

Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA-USP) e membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (abca)

 15/07/2019 - Publicado há 5 anos

Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele.

(Mário de Andrade, Macunaíma, 1928)

Macunaíma, criado em 1928, por Mário de Andrade, nasceu retinto, porém pelas águas do rio tornou-se homem branco. Esse episódio inaugura as três raças (branca, negra e índia) no romance que tece as peripécias do “nosso herói sem nenhum caráter”. Num tempo e espaço mágicos, o autor fundante do modernismo, constrói uma narrativa que envolve mitos populares e cultura colonizada para desvelar a complexidade psicológica do “povo brasileiro”. Embebidos pelos ideais que buscam as raízes do Brasil e a homogeneidade nacional, por muito tempo, artistas e intelectuais fornecem os subsídios necessários para o exílio de memórias. Essas memórias “mal resolvidas reminiscências” que expõem a segregação de grande parcela da população (negros, índios, mulheres e LGBTs*) e, assim, elas são escondidas pelo mito de nossa democracia racial.

Os mais de 300 anos de escravidão (e, após 1888, de marginalização) nos dão o contexto atual: a permanência do privilégio do homem branco; o “misturar para embranquecer” e, ao mesmo tempo, o extermínio do sangue mestiço – evidente paradoxo e clara expressão do determinismo biológico que legitima a hierarquia das raças. Todos esses fatores são camuflados pela falsa meritocracia que impeliu (e ainda hoje impele) a juventude negra e mestiça à discriminação, sendo o sistema escolar um dos mecanismos mais potentes para essa exclusão. Mas, nessa “história do homem cordial”, sempre há os que denunciam e resistem.

Artistas visuais, como Flávio Cerqueira (São Paulo, 1983), escancaram séculos de memórias exiladas em seus trabalhos. Simbolicamente, nos trazem a tensão e o debate que alguns insistem em manter proscritos. E, por capricho da história da arte, Flávio usa, inspirado em Rodin, o bronze – material tão caro aos monumentos que rememoram os heróis. Adequado à tradição dos monumentos, o bronze liga-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é legado à memória coletiva). Para além dos nossos dias, o artista trabalha com um processo milenar (a fundição em bronze pelo processo de cera perdida) para dar forma aos seus personagens que, de certo modo, são anti-heróis.

Tião, 2017, realmente, é um anti-herói dignificado pelo bronze. Ele é insubmissão da arte contemporânea que utiliza a técnica tradicional para discutir os marginalizados. Citação, ironia e resistência no dia-a-dia marcam o fazer de Flávio Cerqueira. Nas suas esculturas, negros e mestiços protagonizam situações de introspecção e reflexão. Segundo a crítica de arte brasileira, eles representam novas versões para a história oficial do país.

Tião – Foto: Rômulo Fialdini

Nesse sentido, Flávio joga com a força da tradição escultórica, através da técnica, do trabalho em atelier e da expressão figurativa, para miná-la de dentro para fora. O que faz sua arte tão contemporânea? Justamente, são o motivo (aqui já explicitado) e as pequenas subversões. E o que são as insubordinações? Vez ou outra, ele introduz objetos que rivalizam com o bronze, tais como, tinta eletrostática, espelhos, fiança, livros, escadas e troncos de árvores. Os títulos de seus trabalhos completam a reflexão sobre o motivo. Aqui tratemos de destacar algumas.

Em Foi assim que me ensinaram, 2011, o artista nos mostra a humilhação disfarçada de educação. De frente para o canto da sala, o dito “aluno indisciplinado” cumpre seu castigo sentado nos livros que deveriam ser sua redenção, mas são a base para o seu castigo. Em Eu te disse …, 2016, o corpo do menino foi sepultado pelos livros e pela quantidade de informações. Nas duas peças, o artista-contador de “causos” nos faz rememorar a opressão do sistema educacional brasileiro.

Eu te disse – Foto: Rômulo Fialdini

Em Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim, 2015, da cabeça do menino de bronze brotam plantas que se entrelaçam e se lançam ao espaço que envolve a obra. Essa peça reverencia a tela Eu vi o mundo … ele começava no Recife, 1928, do modernista Cícero Dias – obra que provocou grande escândalo por seus nus provocativos e por sua atmosfera onírica. À época, criação artística e sonhos são vistos como manifestações legítimas do inconsciente. A obra de Dias corresponde de modo imediato a essas expectativas. Mas, o mote do menino de bronze são seus sonhos e ideias que germinam e tomam de assalto o que está em volta.

Antes que eu me esqueça, 2013, a figura defronte ao espelho busca por sua imagem no reflexo; procura por uma identidade que a história sempre tentou dissipar – os traços identitários são memórias esmaecidas, mas não apaziguadas. Amnésia, 2015, nos faz lembrar o banho de Macunaíma, mas nela a tinta branca não é mágica e tampouco suficiente para cobrir o menino – o embranquecimento social (a face pervertida da mestiçagem) surge aqui como memória sombria que paira entre nós.

Por fim, a poesis de Flávio Cerqueira nos remete às memórias que muitos preferem deixar adormecidas. Mas, são sentimentos que o artista vive (que nós vivemos e, por isso, a conexão). O artista não nos conta uma história com início, meio e fim porque nosso tempo e nossos sentimentos não são lineares. São memórias que vêm e vão. Cada uma de suas peças toca em ferimentos não fechados (mas, que insistem em ser ignorados). São esculturas que dizem tanto de nós e dos “outros” e, por essa razão, cada vez mais, têm acessado o devido reconhecimento de acervos, coleções e galerias nacionais e internacionais – isto porque tratam do humano em nós.

 

Uma palavra – Foto: EGSChempf

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