“Estado de cansaço”: como viabilizar a participação social em tempos pandêmicos no Brasil

Por Vivian Soares César, Ivan Carlos Maglio, pesquisadores do Programa Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, e Pedro Roberto Jacobi, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) e do IEA-USP

 12/05/2021 - Publicado há 3 anos
Vivian Aparecida Blaso Souza Soares César – Foto: IEA

 

Ivan Carlos Maglio – Foto: Arquivo pessoal

 

Pedro Roberto Jacobi – Foto: IEA
Vivemos atolados no caos, impactados 24 horas por dia pela hiperconectividade. O medo do tédio profundo e da melancolia nos deixa como robôs da nossa própria existência, em uma busca incansável pela manipulação da natureza, pela longevidade e felicidade. A hipervigília torna difícil fechar os olhos, e isso atrofia as fantasias relativas ao outro. Byung-Chul Han nos mostra que o desaparecimento do outro leva à agonia de Eros. O enclausuramento do self desemboca na sociedade do cansaço, e o sujeito do alto rendimento acaba isolado em si mesmo, o que o leva ao desânimo e a atrofiar-se.

A partir dessa perspectiva, adentramos no “estado de cansaço”, que acomete a todos nós: o medo, a incerteza, a impossibilidade da realização de si mesmo e com os outros, a falta de perspectivas claras e coerentes em relação à gestão da pandemia e seus impactos avassaladores, a ausência de uma comunicação pública que esclareça à população onde estamos e quais medidas são tomadas para a saída coletiva desse “estado de cansaço”.

O cansaço excessivo em função das longas jornadas de trabalho, das alterações nas dinâmicas de higienização e preparo da alimentação familiar e do confinamento desembocou no “estado de cansaço”, que é uma analogia do avanço das síndromes contemporâneas relacionadas à saúde mental, que se acentuaram ainda mais durante a pandemia.

O “estado de cansaço” avança também nas diversas formas de violência, como, por exemplo, o feminicídio. De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto AzMina, no período de março a dezembro de 2020, 14 Estados apontaram aumento de 20% no número de feminicídios em comparação com o mesmo período de 2019.

Além disso, são muitos lutos a serem processados simultaneamente em função da perda de entes queridos e familiares, de grandes autores, artistas e figuras públicas que são referências para a sociedade, o que acaba contribuindo ainda mais com esse “estado de cansaço”.

E como isso tem impactado nas dinâmicas das atuações dos grupos e coletivos que defendem as áreas verdes urbanas e o direito à cidade? Desde 2016, pesquisas sobre essas dinâmicas são realizadas no Cidades Afetivas, um observatório dos movimentos afetivos que ocorrem nas cidades.

Um dos seus desdobramentos é a pesquisa realizada por Vivian Blaso no pós-doutorado do Centro de Síntese USP Cidades Globais, sob a supervisão de Suzana Pasternak, sobre os processos de mobilização e participação da sociedade civil nas estratégias e atuações de advocacy na defesa das áreas verdes urbanas em São Paulo. Outro desdobramento é a pesquisa em curso sobre o uso dos parques municipais durante a pandemia de covid-19, realizada em parceria entre a SVMA, Centro de Síntese USP Cidades Globais, IEA-USP e o Fórum Permanente de Áreas Verdes.

Em 2020, a partir da declaração de estado de calamidade pública no dia 21 de março em função da pandemia global causada pela covid-19, o Congresso Nacional passou a tomar decisões remotamente por meio do Sistema de Deliberação Remota (SDR). Completamente desarticulados, esses grupos e os movimentos sociais, e até mesmo as organizações da sociedade civil, ficaram bastante fragilizados no enfrentamento das demandas políticas em função da pandemia e desse sistema de deliberação remota.

Ao observarmos os grupos sociais, em meados de abril de 2020, percebemos que alguns, em situação de vulnerabilidade, se auto-organizaram por meio de práticas comunitárias na tentativa de adquirir itens básicos de alimentação e higiene pessoal e enfrentar a falta de água, que contribuiu ainda mais para que a situação referente ao enfrentamento da pandemia ficasse ainda mais insustentável.

Nesse cenário marcado pelas desigualdades de todas as ordens, no dia 18 de maio de 2020 alguns moradores de Paraisópolis, comunidade localizada na região sul da cidade de São Paulo, marcharam até o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, para reivindicar do poder público medidas e políticas públicas que contribuíssem para o enfrentamento da covid-19, na tentativa de preservar a própria comunidade, em situação de alta vulnerabilidade social e de saúde pública.

Esses moradores se auto-organizaram para enfrentar a pandemia e criaram a sua própria metodologia social, denominada “presidentes de ruas”, em que 420 voluntários são responsáveis por “zelar por trechos de vias predefinidos, cada uma com cerca de 50 casas. Os “presidentes” têm a missão de monitorar se algum morador de sua região tem sintomas da covid-19 ou se precisa de atendimento médico. Outra tarefa é a de identificar as famílias que estão com a renda reduzida ou mesmo sem renda e que estejam passando fome.

Conforme o relatório Um país sufocado – balanço do Orçamento Geral da União, publicado pelo Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos, em 7 de abril de 2021, que avaliou os impactos dos gastos e orçamento público no enfrentamento da covid-19 nas áreas da Saúde, Educação, Criança e Adolescente, Políticas Socioambientais, Indígenas, Mulheres, Igualdade Racial e Direito à Cidade, “o governo federal deixou de gastar R$ 80,7 bilhões do orçamento destinado a conter os efeitos da pandemia em 2020 […] Isso equivale a 15% do total dos recursos gastos neste fim. […] Após quatro meses da declaração de emergência nacional por parte do governo, o Inesc apontou que apenas 40,1% do valor planejado no orçamento do governo federal para combater a pandemia da covid-19 tinham sido executados. […] relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) […] apontou que o Ministério da Saúde havia gasto apenas 29% da verba prevista para combater o novo coronavírus desde março”.

Nesse período, o grupo de pesquisadores do Centro de Síntese USP Cidades Globais realizou um ciclo de webnários, denominados Diálogos Abertos, com o objetivo de ouvir como essas lideranças comunitárias estariam se auto-organizando para o enfrentamento da pandemia, uma vez que não havia sido definida uma estratégia do governo federal para o auxílio emergencial para a população vulnerável.

De acordo com Andrea Gozetto, na publicação Lições aprendidas a partir da análise de seis casos de Advocacy, divulgada pela RAC – Rede Advocacy Colaborativo, desde 21 de março de 2020 o Senado inaugurou o Sistema de Deliberação Remota (SDR), mas, apesar de ser um importante avanço tecnológico, não foram considerados:

• as formas de participação e controle social por meio do sistema de deliberação remota;
• não havia previsibilidade sobre o conteúdo da pauta a ser votada; e
• como as votações não eram realizadas de forma nominal, a sociedade civil se viu impedida de acompanhar as atividades parlamentares de forma efetiva.

Tais enfrentamentos acabaram prejudicando ainda mais os processos de participação social nas decisões das políticas públicas, se considerarmos que um em cada quatro brasileiros não tem acesso à internet, o que representa 46 milhões de brasileiros que não acessam a rede, de acordo com pesquisa divulgada pelo IBGE em 2019.

Uma primeira reflexão a ser feita é que as políticas públicas para o enfrentamento da pandemia não contam com uma participação social efetiva e igualitária. A população é excluída do seu direito de exercício de cidadania assegurado na Constituição Federal de 1988, cuja participação nas decisões sobre a sua vida devem ser respeitadas, conforme previsto no Artigo 5º, que diz respeito aos direitos fundamentais e garantias essenciais:

“XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

Nesse contexto crítico de estado de emergência, o poder público, na esfera federal, estadual e municipal, optou por dar continuidade aos processos de deliberação remota excludente, colocando à margem 46 milhões de brasileiros que não têm acesso à internet e inibindo a participação popular nas pautas públicas, completamente desalinhada dos princípios fundamentais da Constituição Federal.

Vale ressaltar que todas as deliberações estão relacionadas aos direitos humanos, como mencionado na referida pesquisa do Inesc: “Os gastos com a função Saúde, por exemplo, caíram 6% em 2020, em comparação com 2019, se forem retirados os recursos extras destinados ao enfrentamento da covid-19. Foram R$ 7 bilhões a menos para um setor que sofre uma histórica insuficiência de recursos”. Dessa forma, os grupos mais vulneráveis do Brasil ficaram ainda mais prejudicados.

Com um sistema de deliberação remota excludente, e mesmo com uma parcela significativa da população que tem acesso a internet de qualidade, como os cidadãos brasileiros conseguirão se organizar e estar a par das decisões políticas se o Brasil está lutando contra a fome, a falta de empregos e renda e enfrentando uma pandemia, cujo número de mortos no País já ultrapassa três mil diariamente?

Retrato da insegurança alimentar
• 10,3 milhões de brasileiros viviam em domicílio com privação severa de alimentos em 2017-2018
• 36,7% dos domicílios tiveram algum grau de insegurança alimentar
• Metade das crianças menores de cinco anos moram em domicílios com algum grau de insegurança alimentar
• Mais da metade dos lares com insegurança alimentar grave é chefiado por mulheres
• 1,3 milhão está no Nordeste
(Fonte: Pesquisa de Orçamentos Familiares [POF] 2017-2018 – IBGE)

Estes são aspectos sombrios desse cenário fúnebre que atravessamos.

Acentuando essas condições desiguais, existe outro mal a ser combatido no enfrentamento da covid-19 no contexto brasileiro: a confusão de narrativas em relação às informações impulsionadas pelo fenômeno das “fake news”.

Desorientadas quanto às medidas eficazes e corretas de proteção contra o vírus, muitas pessoas, entorpecidas pelas fake news e pela dificuldade de tomar decisões claras e coerentes a respeito da defesa de suas vidas, vêm fazendo uso de medicações sem eficácia comprovada e acabam por desprezar as medidas adotadas que têm comprovação científica, como o uso de máscara, o isolamento social e a redução de aglomerações.

Entretanto, grande parte da população trabalhadora é obrigada a enfrentar as aglomerações no transporte público, e grande parte dos trabalhadores informais perdeu sua renda e não conta com o auxílio emergencial dos governos. De acordo com matéria publicada no jornal Nexo, “das mais de 8 milhões de vagas perdidas nos nove primeiros meses de pandemia, 4,6 milhões (56,5%) eram informais”.

E uma pesquisa realizada pela Rede Penssan sobre insegurança alimentar no Brasil durante a pandemia afirma que “houve em dois anos um aumento acentuado na proporção da insegurança alimentar leve – de 20,7% para 34,7%, mesmo entre pessoas que não se encontravam em situação de pobreza”.

Diante dessa situação de calamidade, a Central Única das Favelas – CUFA, a Gerando Falcões e a Frente Nacional Antirracista, com o apoio do União SP e cooperação da Unesco, uniram esforços para criar o Movimento Panela Cheia com vistas a arrecadar recursos para a compra de cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade.

Outra consequência causada pelas fake news é que elas geram um grupo de adeptos do negacionismo sistêmico que desprezam a ciência, o que acaba coincidindo com uma tática governamental de controle das condutas, como mencionado no jornal Valor Econômico de 6 de abril de 2021, em artigo escrito por Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, uma tática comum de governos autoritários. Esse fenômeno não pode ser considerado um fenômeno isolado e vem ocorrendo em outros locais no mundo, como ocorreu nos Estados Unidos durante a era Trump.

Em maio de 2020, durante uma reunião ministerial, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu a ação governamental de “passar a boiada” e “mudar” regras enquanto a atenção da mídia estivesse voltada para a covid-19. Tudo isso é reflexo de uma “tática de governo de controle das condutas”, que é praticada tanto na esfera federal como na municipal e estadual.

As primeiras análises sobre esse tema não são nada otimistas, e a tendência é que essa situação se agrave ainda mais até o período das próximas eleições presidenciais no Brasil, em outubro de 2022.

Retomando as análises que impactam as decisões e a participação social nos processos de políticas públicas na defesa de áreas verdes, no dia 6 de abril de 2021, deparamo-nos com uma denúncia em relação à ameaça à Serra do Curral, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, realizada pela vereadora Duda Salabert, primeira vereadora trans a ocupar a Câmara Municipal de Belo Horizonte, que também foi a mais votada. Em plena pandemia, é pleiteada a autorização para a instalação de um complexo minerário pela Mineradora Tamisa (Taquaril Mineração S/A). Essa autorização poderá comprometer a manutenção e preservação de uma área municipal tombada e colocará em risco a fauna e a flora. Cabe observar que não foi realizada uma consulta pública com a população de Belo Horizonte, impedindo assim a participação popular para acatar ou não os impactos socioambientais advindos dessa autorização. Infelizmente, este não é um caso isolado!

Em São Paulo, o governo municipal anunciou um cronograma para a revisão do Plano Diretor Estratégico prevista para 2021, o mais importante instrumento de orientação para o desenvolvimento urbano da maior cidade do País e da América Latina, para ser realizada em plena pandemia. Destacamos que sabidamente não há condições de ampla participação popular, contrariando a Constituição Federal e a Lei Federal Estatuto da Cidade (artigo 40, parágrafo 4º), que exige a ampla participação da sociedade em sua elaboração. A prefeitura propôs um método “híbrido”, virtual e presencial, quando sabemos que cerca de 25% da população paulistana sequer tem acesso à internet e que não há segurança sanitária para reuniões presenciais.

Apesar da reação imediata da sociedade organizada, liderada pelo Movimento Defenda São Paulo e pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil – Seção São Paulo, que publicaram uma carta aberta, assinada por 106 entidades e pessoas da sociedade civil, solicitando que a revisão do Plano Diretor Municipal fosse adiada, a prefeitura lançou, em 10 de abril de 2021, um edital de chamamento das entidades para se inscreverem nesse modelo virtual, eivado de limitações e restrições.

A quem interessa rever o Plano Diretor agora? Ou qual é a urgência da revisão do Plano Diretor em plena pandemia? O argumento só interessa aos representantes do mercado imobiliário, à prefeitura e sua base legislativa. O presidente da Câmara Municipal defende que “é preciso destravar a cidade” – para isso seria preciso iniciar logo a revisão do PDE, a votação de diversos projetos de leis de Operações Urbanas e Projetos de Intervenção Urbana – PIUs e lançar, pela prefeitura, o calendário da revisão do Plano Diretor Estratégico.

Dessa forma, o mercado imobiliário foi alçado a interlocutor privilegiado e exclusivo pela prefeitura municipal, que até agora não abriu o diálogo com essas entidades, apesar das inúmeras solicitações. Por outro lado, o ramo da construção civil foi considerado essencial, e suas atividades estão em franco desenvolvimento, com cerca de 480 novos lançamentos de edifícios apenas nas áreas de maior interesse junto aos eixos de transporte de massa, segundo dados de monitoramento oficial dos resultados do Plano Diretor elaborado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento – SMDU (Prefeitura de São Paulo – Planurbe/SMDU, 2020). O setor da construção civil cresceu 14,2%, entre setembro 2020 e fevereiro 2021, segundo dados do jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de abril de 2021.

Ou seja, nada justifica essa pressa, e o adiamento da revisão é justificável legalmente devido à pandemia. A única justificativa é novamente a estratégia de “destravar a cidade”, alterando a legislação mais importante da cidade sem o devido e amplo processo participativo. A exemplo do governo federal na área ambiental, a prefeitura quer “passar a boiada” e ajustar a política urbana para atender a um único interlocutor privilegiado: os representantes do mercado imobiliário.

Embora se julgue importante o aperfeiçoamento do Plano Diretor Estratégico e o ajuste dos seus objetivos e instrumentos urbanísticos, isso não poderia ser feito a toque de caixa, com risco de prejuízo para a cidade, até pelas incertezas trazidas pela pandemia para planejar o futuro da vida urbana.

Só a judicialização, com a suspensão dessa forma de revisão limitada e pautada no atendimento de pressões do mercado imobiliário, poderá evitar os prejuízos à solução futura de questões de mérito a serem enfrentadas pelo PDE, como as aglomerações no transporte público e o enfrentamento da vulnerabilidade socioambiental dos distritos periféricos da cidade.

Na esfera federal, está em discussão algo que retrocede às políticas e conquistas ambientais de outrora, como, por exemplo, as alterações efetuadas no Conama, apontadas na pesquisa realizada pelo Imaflora. Essas alterações permitiram ao governo federal realizar modificações em resoluções que definem regras de proteção ambiental, como as que envolvem a preservação de mananciais, mangues e restingas.

A denúncia feita por Duda Salabert e a carta aberta enviada ao prefeito de São Paulo pedindo o adiamento da revisão do Plano Diretor Estratégico reforçam ainda mais a importância de acompanhamento dos processos relacionados à implementação das políticas públicas com ênfase em estratégias de advocacy.

Advocacy representa e fortalece estratégias que tratam das pautas públicas de interesse comum, cuja base de sustentação é a Constituição Federal, que assegura a participação cidadã da sociedade civil nos processos de decisões que direcionam e ordenam a sua vida nas cidades.

A produção de sentidos e significados comuns neste momento de enfrentamento da pandemia precisa estar ancorada nos valores democráticos que norteiam a manutenção das conquistas, que precisam ser garantidas no atual contexto de desmonte de políticas públicas no País, e esses valores precisam ser sempre praticados e defendidos, pois há nuvens autoritárias a serem combatidas.


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