Elas não são nota de rodapé

Por Alecsandra Matias de Oliveira, doutora em Artes Visuais pela ECA/USP e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA).

 27/09/2019 - Publicado há 4 anos
Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Arquivo pessoal

“Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”

(Paulo Freire)

 

Nos últimos 30 anos, a história vem sendo reescrita com grande densidade. Os “vencidos”, ocultados pelas versões historiográficas oficiais, surgem cada vez mais dotados de memórias reveladoras que exigem a imediata mudança de paradigmas e condutas. Nessa revisão das narrativas, as mulheres, entre outros grupos tradicionalmente marginalizados, tornam-se protagonistas de suas próprias trajetórias.

A velha prática de tornar invisível o feminino como agente histórico tem caído por terra. Reconhece-se, de modo evidente, que as ações das mulheres não cabem mais (nunca couberam) nos rodapés das biografias de seus pais, maridos ou qualquer homem tido como seu tutor. Ana Mae Barbosa dá o golpe final nessa ultrapassada concepção quando une os esforços de pesquisadores (homens e mulheres) para resgatar a contribuição feminina na história da arte e na história da arte-educação no Brasil.

Mulheres não devem ficar em silêncio: arte, design, educação (Cortez Editora, 2019) não é um título. É um manifesto! Ele convoca especialmente as jovens pesquisadoras/leitoras a moverem-se; a não se aquietarem; a abrirem suas vozes às demandas de seu tempo. Aqui se colocam parênteses para dizer que a imagem-título remete à intervenção artística em outdoor de Barbara Kruger, criada em 1992, para a inauguração da sede do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, na Cidade Universitária. À época, um manifesto. E, hoje, revigorado pela pesquisa liderada por Ana Mae Barbosa.

Amálgama de pesquisa, memória, celebração e ativismo em prol da conscientização de arte-educadoras e arte-educadores acerca da condição periférica da mulher na história do ensino da arte, o livro também traz o mea culpa sobre a falta de coragem em assumir-se como feminista (Ana Mae conta sem rodeios sobre essa natureza), algo compreensivo quando se pensa, por exemplo, no machismo arraigado na estrutura social e no debate que acompanha o feminismo nos anos de 1960: as mulheres ligadas às artes temiam a redução de seus trabalhos ao feminismo, visto como mácula por elas e pelo restante da sociedade.

Retornando à organização da narrativa do livro, são três partes distintas: que podem ser conectadas? Sim, perfeitamente! Mas, permitam também a leitura particularizada dessas divisões. Observem como se mantêm independentes, com temáticas e ritmos diferenciados. São autoras e autores que se alternam em suas narrativas. Todos guiados pela presença firme de Ana Mae Barbosa e seu intuito de resgate de uma versão da história ainda não contada.

O acolhimento das mulheres na Escola de Arte e Design de Glasgow e na Bauhaus mostra o lado recôndito da arte moderna e da modernidade: “as garotas de Glasgow” – uma experiência bem-sucedida da atuação de mulheres nos fazeres da arte – foram apagadas da história. Já na Bauhaus, as mulheres ficaram circunscritas ao ateliê de cerâmica e tapeçaria – a elas a arquitetura, por exemplo, era vetada (para os líderes da escola, elas não tinham capacidade técnica para a criação tridimensional). Os ensaios visuais que se seguem aos textos confirmam a exclusão deliberada das mulheres. Ao final, a indagação que cerca o leitor: como esse processo de apagamento foi possível? E, sobretudo, como novas leituras e abordagens até o presente momento não tinham denunciado essa condição? Um mundo cercado de preconceitos e dominação emerge frente aos olhos do leitor atento.

O caso de Marta Erps-Breuer, ex-aluna da Bauhaus, que trabalhou como designer científico no Departamento de Biologia Geral da USP até 1974 e nunca foi notada pelos cursos de artes, chega a ser inacreditável. Por esse fato e outros subsequentes, percebe-se que esse “estado de coisas” não é restrito ao Velho Continente, está entranhado na história da arte brasileira que ainda não se arriscou numa forte revisão sobre a produção artística das mulheres. Adjacentes à revisão outros preconceitos devem ser repensados – tal como as fronteiras entre arte, design e artesanato. A atuação das mulheres nos coloca esse desafio. Tarefa difícil, não?

Igualmente hercúlea é a reconstrução da história do ensino da arte no Brasil através da ação de mulheres, tais como: Noemia Varela, Salete Navarro, Ivonne Jean e Mariazinha Fusari. A reunião de ensaios (repletos de rigor científico e, ao mesmo tempo, afeto) dedicados a essas mulheres resgata os tempos de formação, luta e resistência da arte-educação no Brasil, com ênfase nos penosos anos 1960. Porém, nada como dar voz às protagonistas: as entrevistas e declarações de Eleanor Hipwell, Antonia Apparecida Pallú, Noemia Varela, Lúcia Alencastro Valentim, Solange Costa Lima, Hebe de Carvalho, Fernanda Milani, Laís Aderne, Teresa Costa Rêgo e Tomie Ohtake, efetivamente, revelam os debates, as dificuldades, as incertezas e as experiências das construtoras da área.

Neste ponto, permitam um segundo parêntese: Ana Mae Barbosa, consciente de seu papel nesta história, se coloca claramente: “Sinto-me mal quando alguém afirma que sou pioneira da Arte/Educação no Brasil […]. Se quiserem me dar algum pioneirismo, eu aceito no que se refere à Pós-Graduação” (p. 312). De fato, sua pesquisa traz de volta as que lhe antecederam e suas contemporâneas (aquelas de ideias semelhantes ou opostas, não importa – a reunião de todas aquelas que não serão mais apagadas é o relevante).

Por fim, tudo impressiona na pesquisa que constitui Mulheres não devem ficar em silencio: nas linhas e entrelinhas, a história e os dilemas da arte-educação no Brasil ganham as vozes daquelas que a vivenciaram e, agora, podem ser fonte inesgotável de pesquisa e ensino. Homens e mulheres podem reescrever essa história. E, mais, confirma definitivamente que elas nunca nasceram para ser nota de rodapé.

 


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