Documentos da ditadura militar são vestígios de um passado indigesto

Maria L. Tucci Carneiro é historiadora e coordenadora do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP

 11/04/2019 - Publicado há 5 anos
Maria Luiza Tucci Carneiro – Foto: Marcos Santos / USP imagens
A mais recente sugestão do presidente Jair Bolsonaro sobre as possibilidades dos quarteis “comemorarem” o 31 de março como data-símbolo de uma revolução – e não um golpe militar que emudeceu a democracia brasileira por duas décadas – expressa como alguns segmentos da sociedade brasileira interpretam o nosso passado recente. Nas palavras de Bolsonaro persistem a distorção dos fatos e o esquecimento voluntário com o objetivo de dar legitimidade aos militares da ditadura, “heróis fabricados” e apresentados como salvadores da nossa Pátria amada falsamente idolatrada. Passado indigesto que merece ser revisitado sim, mas sob o viés da memória do mundo, para que nunca mais aconteça, assim como os temas do Holocausto e do nazismo.

É fato comprovado que a Ditadura Militar foi um golpe político sustentado por militares que, apoiados por setores civis, romperam  a legalidade democrática inspirados no mito do complô comunista, velho conhecido do governo Vargas, nossa primeira experiência ditatorial de cunho nazi-fascista alinhada com as ideologias de extrema direita. Importante lembrar, para nunca esquecer, que entre 1964 e 1983 a sociedade brasileira viveu sob um amplo universo carcerário, vigiada e fotografada por todos os lados. Como historiadora tive a oportunidade de consultar os documentos do Fundo Deops/SP durante dez anos consecutivos, coordenando um projeto temático Fapesp em parceria com o Arquivo Público do Estado de São Paulo. A primeira sensação que tive é de que a sociedade brasileira foi, durante décadas, mapeada, invadida no seu cotidiano, estuprada. Fica evidente que a ditadura militar não foi tão branda como alguns querem fazer acreditar.

Os vários movimentos de resistência, dentre os quais o movimento estudantil, foram sufocados pela força bruta e pelos vários Atos Institucionais, dentre os quais  o AI5  cujo exercício calou vozes, prendeu milhares de militantes e baniu intelectuais, sendo, dezenas deles, docentes e alunos da Universidade de São Paulo. Em sequência, outros Atos favoreceram  a tortura e ocultaram o assassinato de centenas de ativistas acusados de “revanchismo”. Aliás, estes elementos são característicos da construção de uma lógica fascista que cria uma relação de sujeição da população ao Estado, impondo disciplina aos corpos ao mesmo tempo que faz uma “lavagem” das mentes. Foi assim que o fascismo e o nazismo – reconhecidos pela historiografia nacional e internacional como movimentos de direita – conquistaram milhares de adeptos com promessas de felicidade. Alimentados por mitos mobilizadores do imaginário coletivo, esses grupos extremistas ofereceram aos seus seguidores uma sociedade “limpa de judeus e de comunistas”. Resultado: mais de seis milhões de judeus foram assassinados, alem de milhares de ciganos, deficientes físicos e dissidentes políticos, dentre eles, as Testemunhas de Jeová.

Entendo que a data de 31 de março merece muitos e muitos minutos de silêncio, pelas almas dos presos e mortos desaparecidos que ainda carecem de lápides coletivas, in memoriam. Apesar do árduo processo de anistia oficializado com a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1968, e das importantes atuações da Comissão de Mortos e Presos Desaparecidos, do Grupo Tortura Nunca Mais e da Comissão da Verdade, as tentativas de esquecimento e deturpação dos fatos históricos continuam vivas. Não devemos permitir que as nossas conquistas democráticas sejam jogadas no fundo do poço. Felizmente contamos com milhares de prontuários e dossiês do Fundo Deops/SP que, entre 1999-2004, foi sistematicamente inventariado por pesquisadores do PROIn- Projeto Integrado Arquivo do Estado/ Universidade de São Paulo, hoje em contínuo processo de digitalização pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Processo lento e gradual que, certamente, permitirá a (re)escrita da repressão e da resistência no Brasil contemporâneo. Para isso, devemos aprender  a ler nas linhas e entrelinhas em busca de indícios e sinais que nos ajudem avaliar os mecanismos de repressão sustentados pelo Estado brasileiro desde 1924 a 1983.

O fato desta documentação policial registrar atos de violência física e psicológica em um tempo continuum demonstra que a gênese dessa mentalidade genocida antecede 1964. Uma herança que tem raízes profundas e cujos tentáculos nos remetem à ditadura Vargas (1937-1945) e, por que não, ao dia seguinte da proclamação da República, quando foi promulgado um primeiro decreto-lei de censura. Daí a documentação dos Fundos Deops nos remeter à imagem de um imenso labirinto com múltiplas entradas e dezenas de saídas, algumas ainda fechadas. Essa questão certamente não é página virada da história e nem razão para comemorações, pois ela ainda é fato, é historia em movimento. Isto sim deve constar dos livros didáticos e ser tema contínuo das nossas investigações.

Importante lembrar que a abertura democrática ganhou novo status com a Lei de Acesso à Informação, de 2011, que permitiu que as instituições públicas detentoras desses acervos (até então com restrições de acesso) liberassem para consulta pública documentos comprobatórios sobre indivíduos afetados pela violência do Estado nos anos da repressão. Avançamos ainda mais com o criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, sob o título de Fundo da Rede de Informações e Contrainformações. Integram este imenso acervo os fundos de órgãos centrais do SisNI, sob a guarda do Arquivo Nacional e de órgãos estaduais e outras entidades, que, pela sua dimensão testemunhal, foram reconhecidos pelo Programa Memória do Mundo da Unesco como patrimônio documental. Portanto, exaltar qualquer ditadura significa um retrocesso no caminhar democrático da humanidade que, nem sempre, aprende com as lições do passado.

 

 


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