Coletivos de mulheres negras evangélicas e a disputa pelo espaço público da religião

Por Simony dos Anjos, doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 01/09/2021 - Publicado há 3 anos
Simony dos Anjos – Foto: Arquivo pessoal

 

 

O Brasil é um país religioso. Segundo dados do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE), apenas 8% da população se declara sem religião. Dos 92% de pessoas religiosas no Brasil, 65% são católicas e 22% evangélicas e os outros 5% professam outras religiosidades. Esses dados colocados desta forma fazem parecer que todas essas pessoas são iguais por pertencerem ao mesmo grupo: sem religião, católicos ou evangélicos e isso é um equívoco bastante comum na compreensão da população religiosa brasileira.

Quando se estuda uma população, se faz necessário conhecê-la em diferentes aspectos, como econômicos, culturais, políticos e territoriais. Ao desconsiderar isso, pode-se cometer o erro de homogeneizar o que não é homogêneo. No caso das pessoas religiosas, os aspectos socioculturais que atravessam os fiéis podem definir comportamentos e relações sociais que se conectam, ou não, com suas religiosidades. Na pesquisa intitulada Negritude e feminismo: mulheres negras féministas nas igrejas evangélicas, chamo a atenção para uma linha de estudo denominada marcadores sociais da diferença, um modo de se estudar grupos sociais a partir de diversas características que os constituem.

Nesta pesquisa, levo em consideração gênero, raça, religião e entendimento político de suas interlocutoras. Da perspectiva de gênero as interlocutoras são mulheres; de raça, são negras; de religião, evangélicas e de espectro político: feministas. E esse é o grande ineditismo da pesquisa, pois o movimento feminista, no senso comum, seria incompatível com a religiosidade evangélica – justamente pela visão conservadora que comumente se relaciona ao grupo religioso. Entretanto, o que se percebe recentemente é o crescente número de grupos evangélicos que têm se localizado no campo progressista, dentre esses grupos, mulheres negras evangélicas feministas.

Tendo em vista essa perspectiva, a metodologia da pesquisa tem três etapas: o mapeamento de grupos feministas evangélicos existentes no Brasil – até o momento, foram mapeados onze grupos progressistas evangélicos que se identificam com a pauta das mulheres negras. Dentre esses grupos destaca-se o coletivo chamado Rede de Mulheres Negras Evangélicas – grupo que iniciou suas atividades em 2018 e que defende uma releitura do texto bíblico a partir da perspectiva de raça e gênero. A segunda etapa é a escuta e acompanhamento da movimentação das mulheres negras evangélicas feministas e, como terceira etapa, a análise das entrevistas à luz de teóricas como Patrícia Hill Collins, Lélia González, Jacqueline Moraes Teixeira e Paula Montero.

Relaciono o surgimento desses grupos ao efeito chamado popularização do feminismo, que se tornou bastante importante a partir dos anos 2010. A popularização do feminismo no Brasil trouxe para o debate dos estudos de gênero termos como interseccionalidade, pautas identitárias e a pluralidade dos feminismos. Neste entendimento, interseccionalidade é uma ferramenta política que os movimentos feministas utilizam para expressar que as mulheres não são iguais, que elas são atravessadas por diversas opressões, o que as tornam mais ou menos vulneráveis à violência de gênero.

E, por essa perspectiva, mulheres negras seriam as mais afetadas, pois sofrem a intersecção entre a opressão de gênero (machismo) e a opressão de raça (racismo). Para as feministas evangélicas negras, além dessas opressões, as mulheres evangélicas são afetadas pela opressão do discurso religioso conservador que prega a submissão das mulheres aos homens. Assim, a pesquisa busca compreender o que pensam as “féministas” (feministas de fé) negras e como vivem sua religiosidade e luta política pela emancipação das mulheres.

No contexto brasileiro, é necessário salientar o fato de a religião evangélica ter tomado um lugar importante no debate público religioso e dos direitos humanos. Quando se trata dos direitos das mulheres, não se pode ignorar que a ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos do governo federal, Damares Alves, traz para o centro do debate dogmas religiosos evangélicos. Tendo em vista que as mulheres negras evangélicas feministas discordam não apenas do discurso religioso conservador, como do uso político da religião para sustentar ataques aos direitos das mulheres, esses grupos feministas usam estrategicamente suas religiosidades para dar visibilidade política às suas causas, o que se pode chamar de controvérsias públicas.

Esses grupos performam estratégias de produção de visibilidade de uma religiosidade feminista ao tensionarem com o movimento feminista que se opõe totalmente ao cristianismo. Ao passo que também tensionam com a Igreja, nos espaços de culto, na espiritualidade evangélica e na disputa da leitura da Bíblia, ao produzirem uma teologia feminista negra. As ações públicas dessas mulheres passam por protestar contra o racismo, contra o machismo e pelo Estado laico, na contramão do que fazem religiosos evangélicos conservadores com grande visibilidade pública.

Por fim, a importância desta pesquisa está em mostrar a diversidade das mulheres evangélicas brasileiras no aspecto de raça, de cultura e de coletividade. Pesquisas como essa mostram a diversidade da religiosidade brasileira e, no momento histórico que se vive, também a relação entre religião e política, e as disputas que acontecem dentro dos espaços religiosos sobre os limites entre direitos humanos e as ações públicas das instituições religiosas.


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