Cala a boca, Reginaldo!

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 30/05/2018 - Publicado há 6 anos

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Jurandir Renovato – Foto: Divulgação / Vinicius Renovato

 

Um dia qualquer à tarde. Reginaldo sai de seu apartamento numa ruazinha encravada em algum ponto entre a Brigadeiro Luís Antônio e a Joaquim Eugênio de Lima e segue em direção ao seu cineclube predileto. Ele odeia cinemas de shopping. É a estreia de uma mostra de filmes armênios (ou seriam búlgaros?) que ele não perderia por nada neste mundo. Ainda mais que a mostra recebeu um sonoro “excelente” do caderno de cultura do jornal (impresso) que ele assina. Por isso acelera o passo: a sessão está quase começando. Numa certa esquina com a Paulista, enquanto espera o sinal ficar verde, estranha o movimento tranquilo da rua, muito diferente do habitual àquela hora do dia. Onde estaria todo mundo?

Alguns minutos depois é ele quem está de volta, a cara de poucos amigos, batendo a porta do apartamento e assustando sua namorada e a amiga dela, as duas em frente à TV, tomando tequila e mastigando salgadinhos sabor pimenta mexicana cujo cheiro, Reginaldo pensa, empesteia o apartamento todo.

Antes de entrar no quarto que também serve de escritório, ele estrebucha, numa explosão de rancor socioeconômico-cultural: “Este país é uma bosta! Onde já se viu fechar o cinema por causa de um jogo de futebol?!”. Diante da indiferença das duas, que ainda por cima gritam “vai, Brasil!”, com o entusiasmo de integrante de torcida organizada, ele arremata brechtianamente: “Suas alienadas!”. E fecha a porta do quarto com o mesmo impulso dramático com que invadiu o apartamento, no intuito agora de pegar algo para ler.

Se me fosse permitido sugerir um livro ao Reginaldo, seria um que provavelmente não consta de sua enxuta biblioteca, composta basicamente de umas tantas suspeitíssimas brochuras de capas laranja, lilás e verde-limão, todas referendadas pelo mesmo já mencionado caderno de cultura. O livro que eu indicaria seria A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura, de Hilário Franco Júnior, de quem Reginaldo já ouvira falar como um dos mais eminentes medievalistas do País, num curso que fez na Casa das Rosas. Ele só não sabia desse livro sobre futebol; se soubesse, talvez ficasse de pé atrás com o autor, sepultando-o para sempre nas profundezas intangíveis de sua memória.

Abrindo o livro na página 167, Reginaldo leria o seguinte: “Embora bem menos comum que no passado, ainda não desapareceu totalmente certa interpretação sociológica do futebol que vê nele um ‘ópio do povo’. Mas se isso significa atividade que afasta o homem da reflexão e da contestação, dificultando as transformações políticas e sociais, a atividade mais alienante é o trabalho…”.

Uma pausa. Será por isso, então, que Reginaldo não trabalha? Por outro lado, se trabalhasse decerto também estaria de folga, como grande parte da população do País naquela tarde fria de junho, e daí sua reclamação sobre o cinema estar fechado não faria o menor sentido, pois o fato que permitia a ele ir ao cinema àquela hora seria o mesmo que motivava o dono do cineclube a fechar suas portas mais cedo. Vamos anotar isso como paradoxo reginaldiano e seguir em frente com a leitura do livro do professor Franco Júnior, só mais um trechinho: “O futebol é fuga do real, representação imaginária, não realidade em si, contudo ele não se diferencia nisso do teatro, do cinema, da literatura, das artes em geral”.

Isso daria o que pensar ao Reginaldo, e ainda que não fosse o bastante para demovê-lo de suas arraigadas convicções, que pelo menos servisse para instigá-lo a ir fazer companhia às meninas na sala. “Vai lá, meu chapa, deixa de onda!”, uma vozinha talvez passasse a sussurrar em seus ouvidos. Vai, Reginaldo! E de algum modo, sabe lá por quais tortos caminhos, Reginaldo acabou indo mesmo.

Agora ele está plantado entre as duas no sofá da sala como uma samambaia. Silêncio. O Brasil vai cobrar uma falta muito perto da grande área. O jogo, contra a seleção chilena, a perigosa La Roja, está um a um e o empate leva à prorrogação e depois – brrr! – aos pênaltis. As meninas roem as unhas pintadas de verde e amarelo. O juiz apita no mesmo momento em que a samambaia afirma ser tudo marmelada, já está arranjado para o Brasil ganhar. A bola sobe demais e vai para fora. As duas desferem, em coro, um agudo “cala a boca, Reginaldo!”, como se fosse culpa dele a má pontaria do batedor. Mas isso, vamos convir, é uma injustiça.

Abrindo o livro na página 167 [do livro de Hilário Franco Júnior], Reginaldo leria o seguinte: “Embora bem menos comum que no passado, ainda não desapareceu totalmente certa interpretação sociológica do futebol que vê nele um ‘ópio do povo’”

Reginaldo andou lendo algumas coisas sobre as tramoias políticas da Fifa e da CBF na internet e agora acredita que tudo que envolve o evento organizado por essas entidades esteja maculado por uma conspiração de dimensões planetárias da qual ninguém escapa, nem as federações esportivas, as agências de fomento, a Rede Globo, o Palácio do Planalto, o FMI, a CIA, a Nasa, o Vaticano e até o fã-clube gay “Viradas Pra Neymar” do prédio vizinho.

Daqui a pouco, no entanto, suas certezas serão abaladas por um acaso espetacular. Mas vamos deixar isso para depois. Por ora nosso trio segue acompanhando a partida que, ao que tudo indica, acabará mesmo empatada. Alguém terá de levantar e ir até a cozinha buscar outra garrafa de tequila. Provavelmente o Reginaldo, ele não se incomoda com quem ganhe ou perca. Não possui aquela centelha de que fala o escritor Salman Rushdie, aquela que transforma um mero espectador em legítimo torcedor, que faz com que o resultado positivo do seu time torne o seu dia menos insuportável, mesmo quando você – no caso, o autor dos Versos satânicos – está proscrito por uma lei, a fátua, que dá o direito a qualquer muçulmano no mundo de matá-lo.

Reginaldo jamais entenderia isso. E não porque não seja seguidor de Maomé, cuja religião sempre julgou bem melhor que o cristianismo e o judaísmo, segundo ele, as duas maiores fontes de hipocrisia do planeta. Reginaldo é contra a pena de morte. Apesar de, às vezes, no cinema, quando começam a comer pipoca do seu lado, ou falar alto atrás dele, sentir vontade de esganar os desgraçados até seus olhos pularem para fora das órbitas ou sair e tocar fogo em tudo, como naquele filme do Quentin Tarantino, que ele adora.

Mas o que é isso? Estamos falando de futebol e não de religião. Em que pesem todas as semelhanças que porventura possam existir entre essas duas motivações humanas, sobretudo àquelas ligadas sob o signo do fanatismo, estamos falando aqui de ser torcedor e não de ser crente. É isto, afinal, o que Reginaldo não entenderia: essa sutil e indissolúvel ligação entre uma pessoa e um time de futebol. É disso que se trata aqui. E não da pertinência de uma controversa lei islâmica. Poderíamos então, para não ter de jogar fora todo o parágrafo anterior, apenas grifá-lo como segundo paradoxo reginaldiano e voltar ao fio da meada. Porém, como a confusão já está feita, digamos que, no tocante ao futebol, Reginaldo seja um cético.

Aí está ele no sofá, a samambaia posta entre a namorada e a amiga da namorada, tecendo seus comentários – que elas ignoram – sobre o Grande Arranjo para a seleção brasileira ser a campeã da Copa do Mundo de 2014. Só o povo, ingênuo, é que não percebe. Já estamos na prorrogação e os jogadores brasileiros seguem desperdiçando chances e mais chances. É muito improvável que a partida não acabe mesmo na cobrança de pênaltis.

Então, faltando menos de trinta segundos para terminar, na direita da defesa brasileira, uma falta não marcada pelo juiz em cima do lateral da seleção canarinho faz com que a bola caia no pé do habilidoso volante do time chileno, que, infiltrando-se na área após uma tabela com seu companheiro, dribla o nosso zagueiro e manda um petardo na trave. Em seguida, o juiz apita fim de jogo. Nos pênaltis, o Brasil passará de fase. Ufa!

Todos ficarão empolgados. Menos Reginaldo. A imagem da bola batendo na trave aos quase quinze minutos do segundo tempo da prorrogação passa a persegui-lo como um sinal de dúvida, um ruído, dentro de sua perfeitíssima teoria conspiratória. Se aquela bola tivesse entrado, ele pensa, o Brasil teria sido desclassificado logo nas oitavas de final e isso, a bola ter batido na trave, não é algo que pudesse ser combinado… O que isso significa?

Essa partida entrará para a história como o jogo da choradeira. Uma choradeira de incontida alegria e desafogo. Outra choradeira, ainda pior, está por vir, também no Mineirão, dois jogos depois desse, mas por motivos bem diferentes… Nesse dia, só Reginaldo estará sorrindo, confiante de que tudo estava planejado desde o início dos tempos. Para o Brasil perder a Copa do Mundo em casa. – Cala a boca, Reginaldo!

 

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