Breve nota sobre o Partido Novo e os Processos de Moscou

Por Ricardo Terra, professor do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP

 12/11/2019 - Publicado há 4 anos
Ricardo Ribeiro Terra – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
No último primeiro de setembro, Daniel José, deputado estadual de São Paulo pelo Partido Novo, publicou no Brazil Journal um artigo intitulado “O complexo de Chernobyl: a USP e o preço da mentira”. Pelo título da matéria, somos levados a pensar que o artigo trata dos comportamentos covardes do ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação e do ministro do Meio Ambiente – este, por sinal, filiado até então ao Partido Novo –, já que eles se calaram diante da demissão de Ricardo Galvão, cientista reconhecido internacionalmente, professor da USP e até então diretor do Inpe. No lugar das pesquisas científicas sobre desmatamento, o presidente e seus ministros preferem as mentiras que trarão sérias consequências para o Brasil. Ledo engano. O ataque à ciência e à USP no artigo vem do Partido Novo, mas é de um outro tipo.

O deputado inicia o texto referindo-se à série Chernobyl: o preço de uma mentira. A série mostra o confronto entre os políticos do Partido Comunista e os cientistas responsáveis pela avaliação do enorme desastre nuclear na Usina de Chernobyl. Segundo Boris Scherbina, vice-presidente do Conselho dos Ministros da URSS e encarregado do governo no caso, o acidente não teria sido grave, pois teria alcançado uma radiação de apenas 3,6 Roentgen. Já os cientistas que analisavam as consequências do acidente, liderados pelo físico Valery Legasof, concluíram que o impacto era muito maior e retrucaram que aquele número oficialmente divulgado era, na verdade, o limite do medidor de radioatividade usado – que alcançava apenas até os 3,6 Roentgen.

Os políticos do Partido Comunista, por conveniência, foram contra a ciência e negaram a avaliação científica. A radiação de fato teria chegado a mais de 15 mil Roentgen. Ignorando os fatos, as decisões tomadas pelo Partido Comunista tiveram consequências desastrosas. Causa certa surpresa a frase de Daniel José que possibilita a passagem de Chernobyl para a USP: “Apesar de Chernobyl ter se passado em 1986, a mentalidade está presente até hoje, inclusive na USP, a principal universidade do país”. Finalmente começamos a entender o intrigante título do artigo.

O motivo da crítica vem da divulgação do ranking produzido pela Universidade de Leiden. Nesse ranqueamento, baseado no número de artigos produzidos pelas universidades, a USP ficou em oitavo lugar. O alto escalão da USP teria comemorado, e o Jornal da USP publicou a matéria “Ranking que avalia a produção científica classifica a USP como a 8ª melhor do mundo”. No artigo do político paulista, a posição dos altos dirigentes e do jornal da Universidade é retoricamente transformada na própria instituição, “a USP”. “A USP,” ele escreveu, “precisa se livrar de seu complexo de Chernobyl”.

O deputado pretendeu se colocar como os cientistas russos indignados com os membros do Partido. Só que, no caso, com a situação invertida, já que a trapaça seria dos cientistas da USP. Ele afirma que “não há praticamente motivo algum para se comemorar”, pois a produção da USP seria grande apenas numericamente, mas de baixa qualidade, e a USP só produziria muito porque é grande. Aqui, nos perguntamos: será que o membro do Partido Novo procurou comparar a USP com outras universidades latino-americanas do mesmo tamanho ou muito maiores, tanto públicas como privadas? Ainda, o fato de termos uma universidade pública estadual com tantos alunos e professores e que publicam bastante, diferentemente das grandes universidades particulares, que não publicam quase nada, não seria um bom sinal?

Mas vamos continuar com as analogias soviéticas e os truques retóricos do deputado (ou, para imitar seu raciocínio, ao passar tranquilamente de alguns dirigentes para “a USP”, poderíamos dizer “truques do Partido Novo”?). Nesse sentido, seria interessante comparar a atitude do político paulista com a do procurador Andrei Vychinsky nos famosos Processos de Moscou, que ocorreram entre 1936 e 1938 e contribuíram para a consolidação do poder de Stalin. O procurador soviético partia de fatos, alguns verdadeiros, e os distorcia até demonstrar que os réus eram contrarrevolucionários. Com isso, extraía-lhes a confissão dos pretensos crimes e os obrigava a fazer “autocrítica”.

Qual o crime da USP, ou, melhor, dos altos escalões? Comemoraram os resultados do ranking de Leiden e o Jornal da USP divulgou a notícia. Nosso político novo, porém, pergunta: “Como vamos melhorar se buscamos apenas mentiras confortantes e escondemos as verdades inconvenientes?”. O Jornal da USP publicou a notícia sobre o ranking de Leiden, estampando no título da matéria algo que não é verdade – a USP como sendo a oitava melhor universidade do mundo; a verdade é que ela é apenas a universidade com a oitava maior produção científica do mundo. Não obstante a matéria deixar claro que a USP é apenas a oitava universidade em número de artigos publicados, o artigo do deputado sugere que haveria uma mentira “da USP”, e que essa mentira teria um alto preço.

Para extrair a confissão dos réus e exigir a autocrítica, o Vychinsky paulista precisa esconder os fatos que poderiam incomodar o Partido e denunciar sua visão ideológica. Se o procurador estivesse buscando a verdade, o que seria de se esperar, já que o deputado é membro do Conselho Consultivo da USP, teria visto que o Jornal da USP publica os resultados de todos os rankings, não apenas os de Leiden. Se o político quisesse entender a USP, deveria ter visto, por exemplo, como o sistema de autoavaliação foi profundamente alterado nos últimos anos. Além disso, não se poderia esconder o fato de que USP, Unicamp e Unesp estão participando em um projeto de estudo dos rankings internacionais, visando à melhoria das três universidades estaduais. Os resultados dessa pesquisa financiada pela Fapesp estão sendo publicados e divulgados, inclusive pelo Jornal da USP. Os cientistas, é verdade, levam tempo para desenvolverem instrumentos para medir a radioatividade ou para avaliar universidades. Mas seja na antiga União Soviética, seja em São Paulo, os cientistas têm que defender a verdade contra as ideologias políticas que a deformam.

O deputado do Partido Novo escreveu: “Porém, como vamos melhorar se aqueles que deveriam reavaliar constantemente os rumos da universidade simplesmente distorcem a realidade? Como vamos melhorar se buscamos apenas mentiras confortantes e escondemos as verdades inconvenientes? Com certeza não é isso que se faz em Harvard, Oxford, Yale e tantas outras instituições de excelência”. De novo, antes de fazer esse tipo de afirmação, não seria interessante retomar os dados e os argumentos dos estudos, dos artigos, e até mesmo das notícias (publicadas no próprio Jornal da USP), a respeito dos rankings internacionais?

Merece atenção o cotejo feito por Daniel José com universidades americanas, assim como o recurso argumentativo da comparação do PIB e da população da Suécia com os do Brasil. Como nota o político paulista: não somos quatro vezes mais prósperos que a Suécia pelo fato de nosso PIB ser de 2 trilhões de dólares e o da Suécia, de 500 bilhões, já que a população do Brasil é de 210 milhões e a da Suécia, de 10 milhões. A conclusão é que a USP produz muito porque é grande, e, no entanto, o impacto, medido apenas pelas citações, seria pequeno.

Já que o deputado utilizou em seus argumentos elementos comparativos, apresentamos algumas sugestões para o também membro do Conselho Consultivo da USP: comparar uma universidade privada, como Harvard, com as universidades privadas brasileiras; e comparar uma universidade pública estadual, como a da Califórnia, com a USP. Mas, para a comparação ter algum valor, é necessário levar em conta diversos fatores. Por exemplo, seria interessante comparar o PIB da Califórnia e o PIB de São Paulo, o dispêndio por aluno, o dispêndio por artigo publicado, os salários dos pesquisadores, a qualidade dos laboratórios. Convém lembrar que a Califórnia tem uma população próxima aos 40 milhões de habitantes, e São Paulo, aos 45 milhões; que o PIB da Califórnia superou o do Reino Unido, cuja população é de cerca de 60 milhões – e melhor nem lembrar o PIB de São Paulo.

A questão da qualidade não pode se restringir apenas às universidades. Seria interessante também elaborar critérios para avaliar a qualidade e o caráter inovador dos empresários paulistas, assim como a qualidade do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Isso nos levaria a outras questões: qual a eficiência do sistema político, educacional e empresarial de São Paulo? Qual a inter-relação entre esses sistemas? Na formação do Conselho Consultivo da USP, como avaliar, por exemplo, a qualidade dos empresários escolhidos? Comparando com os empresários da Califórnia? Pelo lucro proveniente das patentes das empresas que administram? Os políticos, pelos projetos de lei aprovados com grande repercussão social e econômica? Em suma, avaliar o impacto de qualquer ação é algo complexo e não poderá ser conseguido apenas por meio de um indicador simplista.

Mas é preciso conceder ao deputado: “A verdade”, ele escreveu, “não pode ser apenas um mero detalhe. Uma cultura de mentiras deixa um rastro de destruição”. Não obstante, o Partido Novo e o membro do Conselho Consultivo da USP precisam se livrar de seu complexo de promotor dos Processos de Moscou.

Para avançar será necessário deixar de lado a ideologia e a retórica da pequena política partidária ou dos truques administrativos de órgãos públicos e analisar a precariedade de todas as instituições de nosso Estado, sem confundir “a USP’, seus professores, sua direção e seus veículos de comunicação.

O deputado será bem-vindo se quiser refletir sobre essas e outras questões junto com pesquisadores da USP.

 


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