Brasil e mudanças climáticas: o que “Alice no País da Maravilhas” tem a dizer?

Carlos Nobre (IEA-USP), Tércio Ambrizzi (IAG-USP), Mercedes Bustamante (UnB), José Marengo (Cemaden) e Moacyr Araujo (UFPE)

 18/04/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 23/04/2019 as 11:10
Carlos Nobre – Foto: Divulgação / IEA

 

Tércio Ambrizzi – Foto: Maria Leonor de Calasans / IEA

 

Mercedes Bustamante – Foto: Arquivo pessoal

 

José Marengo – Foto: Divulgação / IEA

 

Moacyr Araujo – Foto: Divulgação / UFPE

Dois trechos de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, descrevem bem onde o Brasil está em termos de preparação para as mudanças climáticas e onde deveria estar.

“Não adianta voltar para ontem, porque eu era uma pessoa diferente então.”

“Minha querida, aqui devemos correr o mais rápido que pudermos, apenas para ficar no mesmo lugar. E se você quiser ir a qualquer outro lugar, você deve correr duas vezes mais rápido que isso.”

Não é possível pensar e administrar o País com o olhar fora da realidade do presente e dos riscos futuros. As condições estão mudando muito rapidamente. Não atuar, permanecer parado, significa, na verdade, retroceder, pois não somente as condições se modificam, mas também a forma como outros governos e organizações sociais e econômicas respondem às mudanças climáticas.

Observações sistemáticas de mudanças nas variáveis climáticas e hidrológicas em todo o mundo não deixam mais dúvida de que as mudanças do clima estão ocorrendo. Pesquisas científicas rigorosas demonstram que os gases de efeito estufa emitidos pelas atividades humanas são hoje os principais vetores de mudança. Sem ações de redução das emissões de gases de efeito estufa, é provável que ocorram rupturas significativas nos sistemas físicos e ecológicos da Terra e nos sistemas sociais, com impactos sobre a segurança alimentar, hídrica, energética e a saúde humana.

A comunidade científica brasileira tem contribuído para o avanço da compreensão de mudanças climáticas e seus efeitos, em particular sobre os impactos para nosso continente. Nossa capacidade de olhar a Terra como um todo e modelar o complexo sistema de interações entre superfície terrestre, oceano, criosfera e atmosfera, envolvendo tanto processos físicos como biológicos, avançou significativamente nas últimas décadas. Sempre haverá algum nível de incerteza na compreensão de um sistema tão complexo quanto o clima global e suas manifestações locais. No entanto, o nível de concordância científica sobre o aquecimento global antropogênico é extremamente alto porque as evidências de apoio são esmagadoramente fortes.

A despeito de todas as evidências científicas sérias disponíveis, a geração de desinformação com argumentos contra a ciência climática persiste. Uma agenda anticiência e tomadores de decisão que desconsideram a primazia do conhecimento representam um grave descompromisso com a sociedade brasileira, e com o destino das futuras gerações.

Alegar um viés ideológico na veracidade das mudanças climáticas provocadas pelas atividades humanas cria obstáculos para ações concretas por parte do governo e da sociedade para nossa adaptação.

E por que precisamos nos preparar para um clima em mudança? Embora esforços para reduzir as emissões de gases de efeito estufa sejam imprescindíveis, as emissões pretéritas continuarão a impactar o clima global por muitas décadas até séculos. Além disso, uma redução lenta de emissões futuras significa que as alterações climáticas adicionais irão agravar os impactos que diversas comunidades e setores da economia já estão experimentando. Nos últimos anos, eventos climáticos extremos têm deflagrado inundações, deslizamentos de terra, secas e incêndios florestais. Tais eventos deverão aumentar ainda mais no futuro devido às mudanças climáticas.

O Brasil deve se preparar para um clima em mudança que impacta a economia e a sociedade. É preciso lembrar que as mudanças climáticas têm impactos desproporcionais sobre diferentes segmentos sociais e as questões de justiça social devem ser amplamente debatidas e consideradas. Para isso, mudanças climáticas devem ser integradas na formulação de políticas públicas abrangentes e na elaboração e identificação de ações de mitigação e adaptação para aumentar a resiliência de serviços e infraestrutura. Nossos sistemas naturais constituem um importante ativo do País no enfrentamento das mudanças climáticas, por meio de soluções baseadas na natureza e nos serviços ecossistêmicos, com melhoria da qualidade de vida da população.

O Brasil precisa retomar com seriedade essa agenda da qual já foi um protagonista global respeitado. Contamos com uma comunidade científica qualificada e atuante na área de mudanças climáticas, que vem contribuindo para o esforço mundial de geração de conhecimento e na elaboração de soluções. Não há tempo a perder encobrindo os fatos com alegações espúrias e irresponsáveis que não encontram respaldo em boas práticas científicas. A sociedade brasileira tem o direito de estar preparada para enfrentar as mudanças climáticas por meio da gestão eficiente de seus governantes e, ao mesmo tempo, o dever de contribuir para os esforços globais de mitigação, respaldados por conhecimento científico robusto.

* Este artigo foi escrito com apoio do grupo Coalizão Ciência e Sociedade, formado por aproximadamente 50 cientistas de diversas instituições de pesquisa do País.

 


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