As piras de outono

Felipe Z. Narita é pesquisador da USP e editor associado do Theoretical Practice (Universidade Adam Mickiewicz – Polônia)

 28/05/2018 - Publicado há 6 anos

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Felipe Ziotti Narita – Foto: Arquivo pessoal

Quando os banlieues parisienses explodiram, em 2005, o sociólogo Jean Baudrillard associou a dimensão simbólica das revoltas (queima de automóveis e mercadorias em circulação) ao hiperconsumismo do capitalismo globalizado e à destruição de seus objetos como signos da exaustão e da desestabilização retroalimentada pelo mercado e seus critérios de exclusão social. A irrupção da violência primitiva aparece em um espetáculo abjeto que, como um contraste moral, escandaliza o verniz de civilidade da ideologia da abundância ilimitada e das aspirações de cidadania inclusiva das nossas democracias liberais. Contudo, Baudrillard omite um tema central na lógica do conflito: mais do que o despedaçamento das formas sólidas das sociedades de consumo, o colapso pressupõe um bloqueio dos campos de circulação. Os amontoados localizados de pessoas e as mercadorias desmanchando, bem como ruas desertas contrastando com carro e pneus incendiados na região metropolitana de Belo Horizonte, encenam uma espécie de ritual coletivo capaz de dramatizar algo sintomático de nosso horizonte cultural e suas tendências conflitivas.

As recentes paralisações e comitês de gerenciamento de crise, inicialmente, decorrem da constante variação e do aumento dos preços de combustíveis em função da carga tributária e das oscilações do mercado – na esteira da prática de gestão adotada pela Petrobras em relação ao diesel e à gasolina desde outubro de 2016, quando, tentando se “comportar como uma empresa”, estruturou os preços de paridade internacional (PPI) tendo em vista o aggiornamento das estruturas de mercado. A amplitude das mobilizações, no entanto, não pode ser confinada a um tema pontual. Se o atual caos evidencia questões mais amplas de infraestrutura de circulação (como a excessiva dependência em relação às vias rodoviárias, construída na modernização periférica brasileira a partir dos anos 1950 e 1960, ou o problema da locomoção urbana), o processo é inseparável da conjuntura de crise institucional, social e econômica que direciona a democracia liberal a tendências agonísticas.

A dificuldade de acordos e as paralisações iniciais foram seguidas de uma difusão de vozes e fracassos. Por um lado, os meios de mobilização coletiva (Facebook, WhatsApp e, em menor medida no caso brasileiro, o Twitter) reforçam a pulverização das novas mídias e dos instrumentos remotos marcantes no potencial multitudinário que inundou as cidades do capitalismo global, entre 2011 e 2013, nos Estados Unidos, Espanha, Egito, Turquia e Brasil. Por outro lado, mesmo diante da evidente fragmentação dos atores, houve negociações centradas em Brasília – os protestos, não obstante, prosseguem. A dificuldade da ação comunicativa, a erosão de discursos de legitimidade e a impossibilidade de uma narrativa unívoca dos eventos, então, expõem um mal-estar mais profundo, reverberando algo da crise de representação escancarada por outras ruas, as de 2013, e ainda aprofundada pela deterioração da confiança institucional.

A atual crise é talvez um dos epígonos de uma conjuntura de exposição das mazelas sociais, em que o jogo de bravatas institucionais e a precarização das formas de vida no capitalismo contemporâneo queimam junto ao acúmulo de escombros da infraestrutura.

A esterilização do espaço social decorre, fundamentalmente, do bloqueio da circulação: dinâmica vital em uma sociedade produtora de mercadorias, em que a circulação de indivíduos e coisas é pressuposto da valorização e das estruturas de socialização capitalista. Se o discurso da crise é instrumento de gestão política da população, os resultados da agenda de austeridade e da precariedade da recuperação econômica têm imposto consequências terríveis à sociedade – já penalizada, aliás, pela série de “apagões” setoriais que ocorrem desde 2016. O bloqueio da circulação, então, é uma espécie de couronnement de l’oeuvre conduzido em uma reação em cadeia, cadenciado como marcha macabra, implicando desabastecimento, carestia, racionamento, escassez de alimentos e de produtos (quadro ainda mais grave diante do contexto de redução de estoques), atividades fundamentais suspensas e a barbárie do mercado em relação aos preços de itens básicos. Ao lado do caos, soluções rasteiras circulam (intervenção militar), reforçando a ideologia da autoridade e a deterioração da esfera pública democrática por meio de polarizações estreitas e deslizes autoritários junto aos populismos de direita.

A atual crise é talvez um dos epígonos de uma conjuntura de exposição das mazelas sociais, em que o jogo de bravatas institucionais e a precarização das formas de vida no capitalismo contemporâneo queimam junto ao acúmulo de escombros da infraestrutura. Se o saldo imediato é a incerteza em relação aos preços (tendo em vista a reposição das perdas), ao trabalho precarizado e às condições das mercadorias, o horizonte de expectativas mais amplo caminha no limiar do abismo. As disputas ideológicas pela narrativa dos eventos oscilam entre o exibicionismo de ícones da direita e da extrema-direita e a flagrante fragmentação da práxis política nas esquerdas.

As reivindicações iniciais canalizaram pautas de cunho sobretudo patronal, mas o prosseguimento das paralisações e a disseminação de seus efeitos construíram cadeias de equivalência com outros conjuntos de insatisfação (tanto autônomos do transporte rodoviário quanto outros setores de trabalhadores). Surgem, então, cenários de paralisação de petroleiros, de condutores de vans escolares em São Paulo e de funcionários do metrô em Belo Horizonte, além da inviabilização de transporte público no Rio de Janeiro e em Porto Alegre e do potencial colapso em sistemas de saneamento e distribuição de água nas cidades. Como um espectro rondando a atmosfera tóxica e altamente inflamável das chamas de outono, o fantasma de uma paralisação geral circula aqui e ali diante do esfumaçamento da ideologia do progresso ordeiro e de qualquer pinguela para o futuro.

Se a situação é desencontrada, evidente é a fragilidade do governo. Encurralado (nos quadros da crise institucional que se arrasta desde 2014 ou 2015), impopular, incapaz de sustentar qualquer narrativa de sucessos econômicos duradouros e ineficiente diante do descontrole da situação, o governo apenas se arrasta (já que cambaleava desde a deterioração da precária base aliada no Congresso). Dois movimentos, no entanto, devem ser notados: (1) após uma encenação de guerra de posições no Palácio do Planalto, o Exército está nas ruas para garantir acesso a refinarias, no contexto da edição da garantia da lei e da ordem e da autorização para a intervenção das forças nacionais na desobstrução de bloqueios; (2) como rescaldo da ideologia, em fala à imprensa no dia 26 de maio, o governo mobiliza as estruturas de gestão da população ao preconizar a urgência da situação e a interpelação moral de “voltar a trabalhar e produzir”.

Os mecanismos de coerção e de disciplina, se não soam como uma burleta desconjuntada, repõem em tom de farsa (com custos sociais altos) a tragédia em curso. Nossas piras de outono deixam no ar algo inflamável e tornam inevitável o aviso de incêndio.

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