As peculiaridades que o cuidado à saúde da população em situação de rua demanda refletiram na construção de políticas públicas voltadas especificamente para este grupo, como é o caso da Política Nacional para a População em Situação de Rua de 2009, que almeja, dentre outros direitos, justamente a promoção de segurança alimentar e nutricional. Os equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional, como os restaurantes populares, trazem um avanço muito importante e indispensável nesse sentido, ainda mais neste momento de pandemia em que as principais fontes de renda da população em situação de rua (como catação de lixo) estão comprometidas. O trabalho intersetorial na promoção da segurança alimentar e nutricional para a população em situação de rua é indispensável. E a este trabalho intersetorial compete a promoção de acesso ao alimento, em qualidade e quantidade adequadas, mas também a promoção de autonomia, autoestima e manutenção da cultura alimentar dessas pessoas.
Trabalhar com a dimensão do prazer em comer para a mulher em situação de rua, enquanto ferramenta metodológica e analítica, é trabalhar com uma dimensão do comer que pode nos ajudar a pensar autonomia, autoestima e coerência cultural. Além disso, é trabalhar com mulheres em situação de rua enquanto pessoas que sentem desejos e vontades, e são também agentes desse sentir, sobretudo porque a construção desse prazer está contextualizada em uma sociedade excludente e que condena prazeres de corpos Outros ao capitalismo. Digo “corpos Outros”, alinhando estas ideias à concepção de Outro do Outro que Grada Kilomba discute sobre as mulheres negras. Podemos dizer que as mulheres em situação de rua – majoritariamente pretas e pardas – são Outro do homem, Outro da branquitude e também Outro da corporeidade capitalista. As mulheres em situação de rua são corpo que rompe com os códigos de subsistência, racionalidade e consumo esperados em uma sociedade liberal de mercado – excluídas desses códigos, seus corpos são também construção da injustiça social e marca de rompimento e luta. Não trabalhar com os prazeres dessas mulheres, racializadas e negligenciadas pelo racismo e capitalismo, seria manter o acesso negado a elas à autonomia, autoestima e saúde. O corpo delas fala, o comer delas fala, o prazer delas fala. Para o avanço na construção de segurança alimentar e nutricional para mulheres em situação de rua, compreender os significados e vivências que elas carregam e constroem sobre comida, comer e prazer torna-se importante.
Sob esses paradigmas, desenvolvo minha pesquisa de doutorado pelo Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP. Realizo um trabalho etnográfico junto a mulheres em situação de rua no centro da cidade de São Paulo. Busco compreender as percepções delas sobre o prazer em comer, com uma equipe que integra antropólogo (Ramiro Fernandez Unsain) e nutricionistas (minhas orientadora e co-orientadora, Fernanda Baeza Scagliusi e Priscila de Morais Sato). Metodologicamente, realizo observações participantes e entrevistas etnográficas com mulheres em situação de rua, e também com demais autores do território, que cruzam e compõem o caminho dessas mulheres: profissionais da saúde, profissionais de serviços voltados à pessoa em situação de rua, artistas de rua, pessoas ligadas a movimentos artísticos e movimentos sociais. Apesar de ser um caminho ainda pouco trilhado, trabalhar com o prazer em comer delas enquanto objeto de pesquisa viabiliza o diálogo científico entre saberes e subjetividades e pode contribuir no avanço de políticas públicas que interajam com a agência do sentir de mulheres em situação de rua no espaço público.
O presente trabalho é realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes), Código de Financiamento 001.