As lições que ficam do mestre de jornalismo Alberto Dines

Marcello Rollemberg é jornalista e editor de Cultura da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 25/05/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 28/05/2018 as 15:26

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Marcello Rollemberg – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

No começo de 1991, disposto a fazer o caminho inverso de algum ancestral remoto, desembarquei em Lisboa para uma nova etapa profissional com a bagagem repleta de clichês – sonhos, determinação, esperança em doses industriais etc. etc. etc… Entre tantos eteceteras, havia algo realmente importante: um cartão de apresentação, escrito à mão por um conceituado jornalista brasileiro (que não vem ao caso aqui nomear), me apresentando a Alberto Dines, então diretor da Editora Abril em Portugal. Fui recebido com a cordialidade e a atenção normalmente dispensadas aos imigrantes bem recomendados por um homem alto, de fala tranquila e olhos muito azuis que logo se ofereceu para abrir algumas portas – as outras seriam a meu encargo. Saí desse encontro com algumas pautas para a revista Exame lusitana – da qual o meu simpático interlocutor era diretor editorial – e a certeza que, daquele dia em diante, poderia colocar Alberto Dines no meu currículo.

Nos encontramos algumas outras vezes, anos depois, já em São Paulo. A última, coisa de dois anos atrás, se deu quando de uma tentativa, infelizmente malograda, de levar o Observatório da Imprensa criado por ele para a Rádio USP.  Esses, na verdade, foram o que poderíamos chamar de “encontros físicos”, aqueles de olho no olho e apertos de mão. Porque já vinha me encontrando com Dines – mais que isso, com suas ideias – há décadas, desde que li, lá atrás, em uma hoje distante década de 1980, o seu O Papel do Jornal, obra fundamental para quem quer, mais do que fazer jornalismo, entender o jornalismo e perceber bem a sua função social. E creio que essa seja essa a missão deste artigo: não enumerar as várias etapas da rica carreira profissional de Dines, suas conquistas, suas grandes soluções editoriais, que isso já foi muito bem feito por inúmeros jornais logo após a notícia de sua morte, na última terça-feira, dia 22. Alberto Dines tinha 86 anos e quase sete décadas de carreira.

(No entanto, aqui vale um parêntese: foi falada à exaustão a tirada editorial que Dines e sua equipe do Jornal do Brasil, que ele dirigia, bolaram logo após a decretação do AI-5, em 13 de dezembro 1968. Para driblar a censura, colocaram na edição do dia 14 aquela famosa previsão do tempo que começa com “Tempo negro…”. Mas ninguém mencionou uma outra traquinagem jornalística criada por Dines, no canto oposto da previsão do tempo na primeira página do JB: “Ontem foi o dia dos cegos”, dizia uma pequena e improvável chamada. Os nada iluminados censores de Costa e Silva, obviamente, não perceberam essa ironia.)

Mas voltando ao tema: mais do que fazer jornalismo de altíssima qualidade, Dines ajudou várias gerações a pensar o jornalismo, a vê-lo como um importante e constante objeto de estudo nessa sua íntima – e nem sempre bem-sucedida ou compreendida – interação com a sociedade.

O legado de Alberto Dines vai muito além de suas atividades em inúmeras redações. São suas ideias que precisam permanecer, principalmente nesse momento em que a imprensa é colocada contra a parede, o jornalismo é visto como o responsável por todas as mazelas do mundo e a sociedade é invadida (e muitas vezes pautada) por expressões como “fake news”, “fatos alternativos” e “pós-verdade”.

Mas não se trata aqui de fazer uma defesa corporativista: o essencial nessa herança intelectual de Dines é que ele, também e principalmente, acabou por obrigar o jornalismo a olhar para si mesmo, refletir sobre sua responsabilidade social, analisar seus erros e acertos, entender sua importância, suas transformações – e também sua arrogância. Foi exatamente isso o que ele fez ao criar a coluna “Jornal dos jornais” na Folha de S. Paulo, na década de 1970 e, mais tarde, o Observatório da Imprensa – deitar um olhar crítico sobre a atuação da imprensa, colocar o jornalismo diante do espelho e mostrar que ele não está tão bem assim na foto quanto gostaria.

“A sociedade é maior que o mercado. O leitor não é consumidor, mas cidadão. Jornalismo é serviço público, não espetáculo”, escreveu Dines, em uma lição que muitas publicações, hoje, parecem ter esquecido. Tudo pela audiência, pela vendagem? Não deveria ser assim, mas muitas vezes é, com a reportagem publicada de afogadilho, apressada, tomando o lugar da investigação, da grande reportagem. Quanto a isso, Dines cutucou: “O jornalismo fiteiro consiste na transcrição pura e simples de grampos (legais ou ilegais), fitas (em áudio ou vídeo) e dossiês, entregues por ‘fontes secretas’ a um jornalista (ou intermediário) desde que haja o compromisso da imediata divulgação sem recorrer a qualquer suporte investigativo”.

Nesse mesmo diapasão, ele escreveu sobre o papel do jornalista e do que é oferecido ao público: “Estamos assistindo a um processo de degradação jornalística sem paralelo em nossa história. Com a cumplicidade dos jornalistas-executivos, aqueles que nos seminários idolatram os leitores mas no dia a dia massacram suas necessidades informativas e culturais mais elementares. Pensam que estão apenas enterrando uma fase da nossa imprensa. Estão enterrando a própria noção de imprensa enquanto imaginam que se pode fazer jornalismo sem jornalistas”. Jornalismo sem jornalistas: está aí o sonho de muita gente, que também sonha com uma imprensa mais cordata.  Esqueçam essa possibilidade. Dines já ensinou que caminhos devem ser seguidos para evitar essa aberração. O problema é que alguns não sabem sequer ligar o GPS.

Mas Dines não se ateve apenas a pensar a ação jornalística no espaço estrito de uma redação, entre mesas abarrotadas de papeis (já foram mais…), computadores e pautas. Ele também deitou um olhar crítico sobre a outra ponta da cadeia informativa – os donos de jornais, aqueles que empresariam o produto jornalístico. Nesse ponto, como sempre, ele não dourou a pílula:

“As elites endinheiradas não gostam de jornais opulentos, substanciosos, preferem a sublime dramaturgia das telenovelas, fingem que são informadas pelas mídias sociais e adoram desfolhar revistas com as irresistíveis citações proferidas por celebridades de shortinho. Já as empresas jornalísticas, incapazes de multiplicar talentos e há décadas apostando em estrelas fatigadas pela rotina da submissão, começaram a afiar bisturis e guilhotinas, ávidas para cortar custos e gorduras”.

Em outra oportunidade, foi além, apontando o dedo para os oligopólios jornalísticos e suas consequências: “Com 5.570 municípios, deveríamos alcançar ao menos a média de um veículo jornalístico por município. O fenômeno da concentração da imprensa não se resume ao número reduzido de grandes empresas de comunicação e à forte tendência para a formação de oligopólios regionais. O mais grave são os vazios, os bolsões de silêncio, as manchas cinza, ocas, espalhadas entre as 727 ilhas do Arquipélago Gutenberg”.

O trabalho teórico de Alberto Dines, sua incessante capacidade de pensar o jornalismo, de refletir sobre ele, não foi algo elaborado unicamente nas redações, mas teve, sim, um forte viés acadêmico. Não era para menos. Além de ter criado um curso de jornalismo no JB para estudantes de Comunicação (que teve Fernando Gabeira pré-clandestinidade como responsável), Dines foi professor da PUC do Rio de Janeiro entre 1963 e 1966 – onde criou as disciplinas de Jornalismo Comparado e Teoria do Jornalismo, que hoje são fundamentais para a formação teórica dos novos jornalistas –, professor visitante da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, em 1974, e um dos criadores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, o Labjor, na Unicamp – isso, sem se falar nos títulos de notório saber em História e Jornalismo que recebeu da USP.  Mas, apesar de toda essa vocação acadêmica e de ser chamado de “mestre” por seus colaboradores mais próximos, Alberto Dines recusava com humildade o título e não gostava de ser visto como “professor”. O que Dines gostava mesmo era de ser jornalista.

 

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