As lições de Paulo Nogueira-Neto e a Vale em Mariana e Brumadinho

José Goldemberg é Professor Emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente e secretário do Meio Ambiente de São Paulo

 01/03/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 07/03/2019 as 16:33
José Goldemberg – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Fui secretário do Meio Ambiente em 1992 durante a Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio 92, e também presidente da Fundação do Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), de 2016 a 2018, e afirmo com convicção que Paulo Nogueira-Neto foi, em pleno período ditatorial, suficientemente hábil e corajoso para introduzir uma legislação já à época moderna no Brasil. Foi a mesma que deu origem a toda a atual legislação brasileira nessa área, um feito extraordinário. Trata-se de um legado incomparável, somando-se a isso o fato de que Nogueira-Neto foi o grande responsável pela criação de zonas protegidas da Amazônia.

Eu e Paulo fomos colegas desde a década de 1970, ambos professores da USP, e começamos uma colaboração, anos mais tarde, no início dos anos 1980, quando ele integrou a Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, a Comissão Brundtland, como ficou conhecida. Nogueira-Neto foi um dos 23 membros dessa comissão, cujo objetivo era estudar a relação entre economia e meio ambiente.

Em tempo de tragédia em Mariana e Brumadinho, fico imaginando o que diria Paulo Nogueira-Neto sobre as catástrofes patrocinadas pela Vale em Minas Gerais. Esses desastres ambientais põem na ordem do dia – com alta prioridade – o problema do licenciamento ambiental, o que significa uma séria inversão de prioridades do governo federal.

A reorganização administrativa federal promovida em janeiro levou à extinção e realocação de várias áreas ligadas a questões ambientais, o que indica uma visão desenvolvimentista, em que o licenciamento ambiental parece ser um obstáculo a esse mesmo desenvolvimento.

Tal visão era explicitamente a do governo militar em 1972, por ocasião da primeira Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que levou à criação de ministérios do Meio Ambiente na maioria dos países do mundo, ou órgãos equivalentes. A visão do governo na época era a de “desenvolver primeiro” e se preocupar depois com as consequências sociais e ambientais decorrentes.

Apesar disso, Paulo Nogueira-Neto, da Universidade de São Paulo, conseguiu convencer o presidente Médici a criar, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) no Ministério do Interior, à frente da qual permaneceu e onde conseguiu introduzir toda a legislação e os órgãos administrativos da área ambiental do Brasil.

A criação da Sema deveu-se mais ao prestígio pessoal de Paulo Nogueira-Neto – integrante de tradicional família paulista e sua reputação científica – do que a uma compreensão clara do governo militar de conciliar desenvolvimento com proteção ambiental.

Em tempo de tragédia em Mariana e Brumadinho, fico imaginando o que diria Paulo Nogueira-Neto sobre as catástrofes patrocinadas pela Vale em Minas Gerais.

Paulo era visto com reservas por grupos interessados na expansão da ocupação da Amazônia, mas com seu perfil não confrontacional conseguiu introduzir no País legislação ambiental moderna, copiada de países da Europa e dos Estados Unidos. O melhor exemplo é o da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb) em São Paulo. O sucesso em resolver o problema ambiental de Cubatão, no governo Montoro (1986-1989), deu à Cetesb estatura e prestígio para enfrentar outros desafios.

Isso não ocorreu , contudo, em muitos outros Estados e certamente não no governo federal, em que órgãos como o Ibama não tiveram apoio para pôr em prática a excelente legislação criada por Paulo Nogueira-Neto.

Estamos pagando hoje o preço disso com os desastres de Mariana e Brumadinho. E o governo Bolsonaro não ajudou nada, até agora, a resolver os problemas reais do setor ao reduzir o status do Ministério do Meio Ambiente (que até cogitou de extinguir) e tolerar entrevistas e declarações, de membros de sua administração, desqualificando a defesa do meio ambiente como inspirada por agentes internacionais e, de modo geral, “xiita” nas suas reivindicações.

A realidade é outra e esta é uma boa hora de recolocar o problema nos termos corretos. A legislação atual tem basicamente dois instrumentos para forçar o cumprimento das normas ambientais adequadas: multas e interdições. A aplicação de multas revelou-se insuficiente, como o próprio presidente Bolsonaro tem declarado, porque a judicialização dos processos tornou-a inoperante. O único instrumento eficaz é o poder das agências ambientais de interditar empreendimentos. Foi o uso dela que permitiu à Cetesb “limpar” Cubatão 40 anos atrás.

Exemplo na área federal é dado pela redução dramática do desmatamento na Amazônia conseguido pela ministra Marina Silva entre 2005 e 2010, que contou com o apoio entusiástico de setores importantes da sociedade e intimidou os promotores do desmatamento. Algo semelhante ocorreu no governo Collor, em 1991, quando a Polícia Federal e o monitoramento do desmatamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi tornado público – levaram a uma redução do desmatamento, que recomeçou a subir no governo Fernando Henrique. Em ambos os casos foi a firmeza e a coragem do governo federal, que apoiaram os técnicos da área ambiental a cumprir suas tarefas. Não foi preciso criar novas leis, mas decidir cumpri-las.

Esta é uma situação parecida com a Operação Lava Jato e o papel do juiz Sergio Moro. A legislação anticorrupção, com delação premiada e outros dispositivos legais, já existia, mas foi a coragem do juiz em aplicá-la que fez toda a diferença.

Para evitar novos desastres, como em Mariana e Brumadinho, o governo federal precisa demonstrar claramente que vai aplicar as leis vigentes, “doa a quem doer”. Somente assim os técnicos e engenheiros responsáveis pelos projetos e pela fiscalização se sentirão respaldados para propor a interdição de projetos inadequados e não conceder novas licenças sem a permissão de medidas protetoras da população.

Licenciar uma barragem como a de Brumadinho, permitindo que abaixo dela fossem instalados uma pousada e um refeitório da Vale, ultrapassa as raias do absurdo na sua irresponsabilidade. E poderia ter sido evitado por uma simples medida administrativa. O que seria uma declaração de Paulo Nogueira-Neto sobre isso, se ele ainda estivesse na ativa?

Não é possível, como querem alguns, resolver os problemas da pobreza no País mantendo a natureza intocada. Mas é possível, isso sim, fazer um licenciamento ambiental mais rigoroso e ágil, que proteja a população sem impedir o desenvolvimento. Exatamente como dizia o professor Paulo.

 

 


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