As Humanidades e mais uma ideia genial do presidente

Paulo Martins é professor e vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 29/04/2019 - Publicado há 5 anos

Paulo Martins – Foto: Marcos Santos/ USP Imagens

Sexta de manhã, 26 de abril de 2019, fomos assolados por uma “notícia”: “@abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”. Continua: “A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, a escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”.

Como o início da notícia indica, isso foi mais uma postagem do presidente da República Jair Messias Bolsonaro em seu Twitter, com um link para seu ministro da educação, Abraham Weintraub. E algumas questões merecem reflexões no âmbito das Humanidades e da Universidade de São Paulo, já que a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas é a nossa alma mater e é inegável seu papel na sociedade brasileira como produtora de conhecimento, benfazeja à inclusão social, celeiro de formação profissional e referência da pesquisa nacional e internacional em suas cinco grandes áreas: a Filosofia, as Letras, as Ciências Sociais, a Geografia e a História.

Ainda que nos pareça que a declaração do presidente queira atingir principalmente os beneficiários do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e do Prouni (Programa Universidade para Todos), com cortes na aplicação de recursos tanto para o financiamento como para a concessão de bolsas atendidos por esses dois programas do MEC, fora do âmbito privado, o fato de o Ministério da Educação querer dirigir “seletivamente” a aplicação de recursos ao bel sabor das “idiossincrasias” do Palácio do Planalto é, sobretudo, preocupante para as Universidades Federais, dado que essas dependem orçamentariamente do tesouro nacional e, portanto, estão ameaçadas no cerne de sua autonomia.

No entanto, as universidades públicas estaduais como a USP não podem crer que tal disparate ou sandice não possa vir a nos afetar de maneira importante pois que todos conhecemos nossa dependência da Capes e do CNPq, agências que irrigam os programas de Pós-graduação e o ensino de Graduação com financiamento de projetos e com o oferecimento de bolsas desde a Iniciação Científica até a de Produtividade em Pesquisa. A descentralização proposta por Bolsonaro – muito além de uma inadequação vocabular, como poderíamos supor, afinal “descentralizar” não parece dizer nada naquele contexto – está sim a serviço do desacerto, já que é um verdadeiro ovo da serpente que em sua imprecisão propositada serve como ameaça a todos nós. Não sabermos a quem se destina a ameaça acaba por ameaçar a todos.

Outro equívoco pernicioso é a utilização dos termos “filosofia” e “sociologia” como sinônimo de Humanidades, “humanas”, diz Bolsonaro. O presidente refere-se ao conjunto de áreas do conhecimento congregadas na USP pela Filosofia. A sinédoque aqui entre nós é tomada histórica e respeitosamente, isto é, a Filosofia é metonímia especializada da parte pelo todo, que nos identifica, FFLCH, como centro das Humanidades na Universidade. Já no caso de Bolsonaro a figura de linguagem “humanas” invoca mais uma vez a intencional generalização da informação a fim de desestabilizar, de pôr em dúvida, de deslegitimar e, de forma arrevesada, angariar voto de confiança por falta de clareza – exatamente como fez em sua campanha.

O presidente Bolsonaro, no alto de sua sensatez, não é para menos, age como uma força repressora da época da ditadura: generaliza para desestabilizar. Sua maltratada sinédoque além disso é uma claríssima desqualificação do conhecimento de uma área cuja importância não irei aqui discutir, mesmo porque meu colega Jean Pierre Chauvin neste jornal, no dia 24/4/2019, já o fez (https://jornal.usp.br/artigos/o-papel-das-ciencias-humanas/) e a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, em entrevista ao Valor Econômico do dia 18/4/2019 também (https://www.valor.com.br/cultura/6216087/para-bolsonaro-e-temer-cultura-e-perfumaria-diz-diretora-da-fflch).

Algo muito esdrúxulo é como o presidente quis associar a medicina veterinária, a engenharia e a medicina. O anacronismo dessa posição está muito longe daquilo que é razoável. Afinal, ainda que “o país dos bacharéis” tenha sido uma realidade bem descrita por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, parece-me que tanto a limitação do conhecimento quanto a estigmatização de outras áreas andam na absoluta contramão do mundo atual, em que a transversalidade e a multi ou interdisciplinaridade não só são desejáveis, mas absolutamente praticadas nas grandes universidades de classe mundial (e a USP está nesse caminho). A convivência, a coexistência, o relacionamento e a dependência entre os saberes estão cada vez mais presentes em todos os campos profissionais, afora o fato de que um presidente não deveria subestimar algumas áreas em detrimento de outras, muito menos um governante deveria usar o aparelho de Estado para afastar a população, principalmente a de baixa renda, do universo das Humanidades se essa população desejasse ter esse acesso. A vontade pessoal do presidente e seu menosprezo às Humanidades deveria restringir-se – como a realidade já demonstra pelo Twitter – à sua família e ao seu mundinho pessoal.

Mas o que mais salta aos olhos em sua declaração é a barreira que Bolsonaro impõe às pessoas de baixa renda. Cabe ao governo, segundo o presidente, somente fazer com que as crianças, os adolescentes e os jovens brasileiros saibam “ler, escrever, fazer conta” e, no máximo, “aprender um ofício”, a fim de que quaisquer possibilidades de ascensão social ou de integração ao consumo seja limitada e controlada pelo Estado, num Brasil hoje tão preocupado com os pobres. Os abonados, aqueles que exploram, não devem ter qualquer responsabilidade com a melhoria de vida da população, muito ao contrário, devem estar sim comprometidos com sua servidão e afastando-os, os mais pobres, do acesso às Humanidades, assim sua submissão passará a ser absolutamente voluntária.

Peca Bolsonaro, por fim, ao dizer que educação deve gerar renda: talvez ela nunca seja capaz de gerar, pois não é sua função fazê-lo. A educação, seja em Humanidades, em Ciências Exatas ou em Biológicas, ocupa-se, no limite, em dar formação profissional ao cidadão. Tendo sido cumprido o seu papel, quem é responsável por colocar o cidadão no mundo do trabalho é o Estado se pensarmos no Brasil contemporâneo. O Estado é responsável pelos níveis de emprego. O planejamento e as ações governamentais são regulados por políticas públicas, elaboradas e comandadas pelo presidente da República. A educação é um direito que deve ser garantido para todos em todos os níveis a fim de possibilitar a transformação dessa sociedade desigual.

Segundo o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, da ONU, a universidade é um direito garantido. Esse estatuto legal determina que “a educação superior deverá tornar-se de acesso igualitário para todos, com base na capacidade, por todos os meios apropriados e, em particular, pela introdução progressiva da educação gratuita”. Logo, a educação não deve gerar riqueza; antes, ela compromete receita. Fugir disso, tergiversar ou imputar essa responsabilidade a outro é, no mínimo, irresponsabilidade.

 


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