Alfabetização oceânica: um objetivo fundamental da “Década do Oceano”

Por Flávio Berchez, professor do Instituto de Biociências (IB) da USP, e Tássia Biazon, pesquisadora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano*

 03/02/2021 - Publicado há 3 anos
Tássia Biazon – Foto: Arquivo pessoal
Flavio Augusto de Souza Berchez – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
O oceano é importante, mas ainda desconhecido. Enquanto as populações caiçaras possuem maior familiaridade com o ambiente marinho, as pessoas que sequer tiveram uma vivência com a litoraneidade muitas vezes se limitam a considerar o mar como um lugar para visitar em um feriado em família. Mas todos os seres humanos estão conectados com esse horizonte azul.O oceano chega de diversas formas à nossa vida. Na forma de sal para a culinária, de oxigênio para a respiração, de chuva que irriga a plantação, de gasolina que movimenta o carro, de internet via cabo submarino de comunicação, de alimentos variados (peixes, algas, frutos do mar), de fármacos e de produtos para a fabricação de leite em pó, chocolate, sorvete, cerveja e pasta de dente, entre muitos outros exemplos. Ou seja, os habitats marinhos são de fundamental importância à nossa vida e essa diversidade de ecossistemas, repleta de riquezas, ainda precisa ser conhecida e preservada.

Talvez o ambiente mais conhecido pelo público em geral, mas pouco reconhecido como um habitat marinho, são as praias arenosas. Por ter poucos organismos em sua superfície, esse ambiente é considerado um deserto. Entretanto, sob a areia, há todo um ecossistema onde vive mais de uma dezena de filos de animais, de pequenos nemátodes a caranguejos-fantasmas. O Brasil possui milhares de praias, inclusive a maior do mundo, a Praia do Cassino no Rio Grande do Sul, com 220 km.

Também nessa interface entre o ambiente marinho e o terrestre estão os manguezais, ambientes alagados periodicamente pelas marés, com vegetação arbórea e caracterizado pela variação na exposição à água doce e ao mar. Abriga espécies terrestres, dulcícolas e marinhas, possuindo grande importância para alimentação e ciclo de vida de espécies de interesse econômico, como o robalo-branco e o caranguejo-uçá. Ocorrem em áreas extensas da região norte do País até Santa Catarina, retendo grande quantidade de matéria orgânica em seu solo e armazenando duas vezes mais carbono que uma área equivalente à floresta amazônica.

Embaixo da água, mas ainda influenciados pelo movimento das marés, estão os recifes de coral, ambientes estruturados por algas e animais com esqueleto de calcário. Além de abrigar uma grande diversidade de espécies, eles reduzem a força das ondas que atingem a costa, purificam a água por meio de espécies filtradoras como as esponjas e são importantes na procriação de muitas espécies da biodiversidade marinha. Ocorrem no Brasil predominantemente na região nordeste, como em Abrolhos, na Bahia, com características únicas no mundo.

Ainda não muito longe da costa, mas nunca emersos, mesmo durante as marés baixas, estão os imensos bancos de rodolitos. Esses ambientes são formados por algas calcárias, que na maioria dos casos crescem na forma de pedras do tamanho de um pão francês. Nelas, apenas a camada superficial ainda é viva, realizando fotossíntese e crescendo lentamente. Sobre cada uma dessas pedrinhas crescem outras algas, de até um metro de altura, que servem como alimento para organismos que são posteriormente capturados pelos pescadores. Os rodolitos também são imensos depósitos de carbono. De extrema importância, predominantemente ao norte do Rio de Janeiro e no litoral do Espírito Santo, essas florestas em miniatura ocupam uma área marinha equivalente a vários estados brasileiros.

Outro exemplo digno de nota, que não ocorre no Brasil mas sim em regiões mais próximas aos polos, são as florestas de algas gigantes como aquelas existentes na Reserva da Biosfera do Cabo de Hornos, na região de Subantártica de Magalhães, Terra do Fogo, Chile. Ali, as algas chegam a dezenas de metros de altura, estruturando um ambiente diferenciado, que abriga todo tipo de espécie, incluindo mamíferos marinhos. Esse ecossistema, que ocupa grandes áreas, é fundamental na provisão de alimento para toda a população da região.

Esses e os outros ambientes marinhos, como o mar profundo, têm muito valor! Entretanto, somado aos problemas que eles vêm sofrendo, como a poluição e o aquecimento e a acidificação da água, o desconhecimento sobre eles dificulta sua proteção. Isso é evidenciado, por exemplo, por estudos realizados entre 2011 e 2019, com cerca de 900 alunos universitários de biologia, cujos resultados mostraram que nenhum deles sequer conhecia a denominação “Bancos de Rodolitos”, ou a existência de um ecossistema com tais características. Desconhecimento gravíssimo, tendo em vista o tamanho e a importância desse ecossistema para o Brasil e para o mundo.

Portanto, é necessário o conhecimento desse oceano que “não” se vê, desde as suas importâncias ecológicas ou econômico-sociais até as suas fragilidades. Mas como fazer isso? Por meio da promoção de uma nova cultura! Uma cultura oceânica!

Não faltam exemplos para associar a vida de qualquer pessoa com a vida do oceano. Mas esse conhecimento não é amplamente disseminado. Uma das estratégias para levá-lo a toda a sociedade é por meio da “alfabetização oceânica”, uma das metas dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estipulados pela ONU. Uma pessoa alfabetizada quanto ao oceano entende as influências que ele exerce sobre nós, bem como nossas influências sobre o oceano (diretas ou indiretas).

As deficiências na “alfabetização oceânica” são um problema internacional e têm impacto direto na preservação do oceano como um todo. O conhecimento é essencial para uma sensibilização, gerando preocupação e ações para sua preservação, como a construção de uma gestão costeira sustentável ou mudanças de comportamento individual. Com ele, espera-se uma mudança de visão da sociedade sobre o oceano, possibilitando ações individuais e coletivas mais conscientes. Em outras palavras, o nosso relacionamento com o maior ambiente da Terra deve ser estabelecido por meio de uma cultura que envolve conhecimento, respeito e amor.

Parte desse conhecimento deveria ser abordada no ensino básico, o que não ocorre. Por exemplo, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que norteia os currículos das redes de ensino brasileiras, inclui as temáticas relativas ao ambiente marinho com pouca ênfase, comprometendo sua abordagem na educação formal. Além do ambiente escolar, a mídia, que cada vez mais influencia a visão de mundo da sociedade, tem grande papel em promover o oceano, mas na maioria das vezes isso ocorre de maneira superficial e fragmentada. Essa tarefa também reforça o papel de espaços educadores como o Museu Oceanográfico e o Parque de Ciência e Tecnologia da USP.

Com a Década do Oceano (2021-2030) espera-se maiores esforços não só para se estudar os ambientes marinhos, mas também para que as informações obtidas cheguem à população, influenciadores e tomadores de decisão, de tal forma que posições críticas e bem embasadas norteiem cada vez mais a maneira como tratamos o mar e seus organismos.

*Este artigo contou com a colaboração de Andrés Mansilla, pró-reitor de Pesquisa da Universidade de Magallanes (Chile)


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