Acolhimento integral de alunos na Universidade, visibilidades e invisibilidades de uma realidade impactante

Por Edilene Mendonça Bernardes, psicóloga da Prefeitura do Campus de Ribeirão Preto da USP

 20/05/2021 - Publicado há 3 anos
Edilene Bernardes – Foto: Arquivo pessoal
Em 12 de fevereiro, o Jornal da USP publicou uma matéria elucidativa e com dados significativos sobre a política implementada pela Universidade visando ao acolhimento integral dos estudantes. Matéria assinada por nossos colegas Gerson Y. Tomanari, superintendente de Assistência Social, Antônio C. Marques, professor do Departamento de Zoologia, e Marcia C. Bicego, professora do Instituto Oceanográfico.

Como muitos dos leitores, pude acompanhar, nas duas últimas décadas, os esforços da Universidade para responder de forma efetiva às demandas de uma sociedade caracterizada por extremas desigualdades sociais. Esforços esses que colocaram em pauta diversos questionamentos sobre as políticas de acesso à universidade e as responsabilidades das instituições públicas perante as populações que vivem em maior vulnerabilidade social.

Considerando que o tema me é muito caro, por atuar em um serviço de atendimento psicológico de graduandos, e me deparar diariamente (diversas vezes ao dia) com os impactos das mudanças vivenciadas nas relações interpessoais na comunidade da USP, proponho trazer para a pauta uma reflexão sobre a proposta política de acolhimento, suas conquistas e seus impasses.

Provocada a reformular sua política de acesso ao ensino superior, foram diversas as iniciativas da Universidade para adequar as possibilidades de ampliação de vagas e o ingresso de estudantes que vivem em maior vulnerabilidade social: optou por priorizar a ampliação e adequação de seus espaços físicos, assim como também cuidou da elaboração de políticas de assistência estudantil visando a minimizar possíveis riscos de evasão provocados por falta de condições de permanência. Investiu em moradias estudantis, garantiu acesso a bolsa-alimentação e ao auxílio para aquisição de livros e material didático. Sem dúvida, respostas efetivas dadas à sociedade para que se garantisse o acesso e a permanência daqueles que historicamente estavam invisibilizados e fora dos muros universitários.

Aos poucos foi se desenhando uma nova dinâmica institucional e muitos daqueles que não tinham em seu campo de visão a perspectiva de uma vida universitária em uma instituição pública começaram a ver essa possibilidade, pois grande parte de suas vulnerabilidades sociais, que impediriam a permanência na USP, estavam em pauta e sendo cuidadosamente pensadas e solucionadas. Garantia-se assim o acesso aos cursos, e a uma vida acadêmica em seu sentido amplo, com acesso à pesquisa, cultura e extensão.

Juntamente com a satisfação das conquistas da inclusão se efetivando na Universidade, a realidade das novas políticas de acesso foi aos poucos provocando preocupação em quem atua diretamente no atendimento de graduandos em clínica institucional, pois políticas inclusivas vão além das possibilidades de acesso e permanência à Universidade. É imprescindível que haja uma mudança cultural de acolhimento em que espaços, conhecimentos e oportunidade sejam compartilhados e, fundamentalmente, que as relações humanas acolham com dignidade a diversidade.

As portas de um serviço de atendimento psicológico passam a ser uma alternativa para que indignações e sofrimento dos alunos, mobilizados pelo impacto das desigualdades sociais, de gênero ou raciais, possam ter voz e visibilidade. Sim, parte dos nossos alunos nos alerta diariamente sobre o sofrimento com o sentimento de não pertencimento que se faz presente na Universidade, e provocados, muitas vezes, por nossa própria comunidade.

Ao longo dos anos, as histórias de vida impactadas por diferentes formas de violência evidenciaram que não se trata “somente” de vivências individuais, mas que estamos diante de um sofrimento coletivo, provocado por constantes impasses vividos pelo choque de realidades distintas.

A vida comunitária nas moradias estudantis ilustra significativamente as mudanças na dinâmica das relações humanas universitárias. A ampliação de moradias no interior dos campi trouxe uma nova realidade para a Universidade, espaços públicos e privados historicamente distintos passaram a ser compartilhados. As dimensões do que era público e privado se entrelaçam e as relações humanas são confrontadas em diversos aspectos, colocando em xeque os limites do individual e do coletivo.

Neste sentido, uma das belezas a serem observadas (a flor que nasce no asfalto!) foi o surgimento de uma perspectiva de proteção coletiva entre os “novos incluídos” (simbolizada pelos moradores das moradias estudantis), de solidariedade. É dos próprios alunos que parte a busca por proteção de seus colegas; são os próprios pares que buscam o serviço de apoio aos estudantes, que identificam os sofrimentos e as dificuldades do outro para conseguirem enfrentar uma realidade para a qual não estavam preparados, um universo institucional que historicamente não foi desenhado para a inclusão dos mais vulneráveis, e que ainda carrega subliminarmente o modelo de políticas de acesso anteriores e não inclusivas.

Ao trazer para a pauta temas como solidariedade e coletividade, os alunos buscam ajuda para seus pares como porta-vozes de exclusões sociais históricas, se organizam em coletivos para que possam defender seus direitos e para o enfrentamento de suas dores diversas. Com isso, provocam a instituição a se reinventar, para que a política de inclusão, que tanto avançou em termos de propostas assistenciais, possa também ser provocada a colocar em pauta a promoção da saúde mental e do acolhimento integral da diversidade. E, ainda, para valorizar a cidadania e atuar de maneira também estratégica na gestão dos impasses desencadeados pela presença de uma população historicamente invisibilizada, e não reproduzindo modelos de exclusão e de invisibilidade.

Avançando nesse cenário, com os diferentes agentes da comunidade USP atuando para o enfrentamento dos impasses da convivência de diferenças sociais, raciais e de gênero, ainda tão escandalosas, da nossa sociedade, poderemos minimizar os sofrimentos provocados pelas nossas práticas institucionais enraizadas. Capital humano a Universidade, com certeza, possui. Poderemos, então, ter ainda mais orgulho de nossas políticas de inclusão social já reconhecidas internacionalmente. Temos um longo caminho a percorrer. Ao trabalho?


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