A reinvenção da vírgula

Por Jurandir Renovato, jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 28/08/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 03/09/2019 as 10:57
Jurandir Renovato – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

No começo de 1902 Machado de Assis ficou desesperado por causa de um erro de revisão no prefácio da segunda edição de suas Poesias completas. Dizem que chegou a se ajoelhar aos pés do Garnier implorando para que o editor tirasse o livro de circulação. O aristocrático e impoluto Machado, quem diria. Mas a gralha era mesmo feia. O tipógrafo trocou o E por A na palavra cegara, o revisor deixou passar, e vocês imaginam no que deu.

No nosso caso em questão o erro (ou a cagada) não foi nada de mais, nem erro foi para falar a verdade, apenas um acréscimo besta de pontuação, talvez dispensável, ainda que de modo algum incorreto. Vai o revisor, fiel à ortodoxia da gramática normativa, e espeta duas vírgulas para isolar um adjunto adverbial deslocado, coisa de pouca monta, diria alguém, mas suficiente para o autor sair bradando aos quatro ventos que lhe roubaram o ritmo da sentença. Um editor experiente traria um cafezinho bem doce, a conter o ímpeto dramático do autor de primeira viagem, talvez caçoando, “deixa de onda”, a lembrá-lo – valha-me Deus! – que ele não é nenhum Bruxo do Cosme Velho. E assim lhe cortando as asas antes do voo.

Mas aqui nosso autor já está em pleno ar, vendendo seu livro feito pão quente, e seu editor – no caso, editora – flutua ao seu lado entre as nuvens. Dupla perigosa essa aí, do Autor Cujo Primeiro Livro Fez Sucesso e sua Editora Deslumbrada com o Livro de Sucesso. Sem escrúpulos, vão passar por cima da autoridade ortográfica do revisor, está na cara; sem piedade, vão querer sua cabeça numa bandeja de prata.

Antes disso, por sorte, terão de consultar o Editor Preocupado com os Outros Livros do Catálogo, sócio na editora, e que nunca guardou muito entusiasmo pelo Autor Cujo Primeiro Livro Fez Sucesso, ainda mais que o Professor de Literatura Respeitado por Seus Pares, seu grande amigo e consultor – talvez mais que isso, a se levar em conta as maliciosas insinuações de sua sócia –, dissera com todas as letras: “O romance desse rapaz é uma merda”.

Depois de certa relutância da parte dele, a que não faltaram gritos e ameaças de ambos os lados daquela sociedade editorial, concordou o Editor Preocupado com os Outros Livros do Catálogo em que se chamasse o revisor para uma reunião, mesmo se tratando daquele Revisor Sem Muita Paciência, famoso por sua excentricidade, quase sempre por seu mau humor, apesar de ser um dos melhores profissionais do mercado.

“Bons profissionais existem às pencas”, teria dito a Editora Deslumbrada com o Livro de Sucesso, “o difícil é encontrar o profissional certo.” O fato, continuou ela, é que para manter a editora precisavam do Autor Cujo Primeiro Livro Fez Sucesso, já que o seu segundo livro poderia também fazer sucesso e aí ele talvez não se contentasse mais com canapezinhos e vinhos nacionais no lançamento.

Entre outras coisas, ela frisou, eles dependiam do sucesso desse segundo livro para poder pagar as contas e eventualmente, talvez, publicar aquilo que o Editor Preocupado com os Outros Livros do Catálogo sempre quis publicar, quem sabe até o livro daquele Jovem Contista Talentoso, este sim uma joia rara, todos concordavam com isso, inclusive ela, mas principalmente – e ela caprichou nesse detalhe – o Professor de Literatura Respeitado por Seus Pares.

O Editor Preocupado com os Outros Livros do Catálogo a mandaria plantar batatas em Marte, como no filme do Matt Damon, não fosse ele um gentleman, formado pela melhor universidade do país e com várias especializações na Europa e nos Estados Unidos. Ele odiava o cinismo de sua sócia da mesma forma que odiava ter de se submeter à lógica mundana do capitalismo. Talvez por isso, enquanto chamava sua Secretária Meio Doidinha e pedia para ela ligar para o Revisor Sem Muita Paciência a fim de marcar uma reunião impreterivelmente para aquela tarde, sentiu-se uma espécie de Raskólnikov (ou Maquiavel, não lembrava direito) a justificar os meios pelos fins. Depois achou ridícula a comparação, e quando já cochilava em sua sala (ainda) sem ar-condicionado, sonhou com galinhas de ovos de ouro.

A Secretária Meio Doidinha não queria pegar no telefone antes de secarem suas unhas as quais tinha acabado de pintar, e por isso demorou um bom tempo até finalmente ligar para o Revisor Sem Muita Paciência, mas quem atendeu o celular foi outra pessoa.

Dentre as muitas doidices da Secretária Meio Doidinha estava essa capacidade de reconhecer a voz de qualquer um pelo telefone, então, quando atenderam a ligação, imediatamente soube se tratar do Resenhista Que Não Tá Nem Aí para a Crítica Acadêmica, com quem trombara algumas vezes pelos corredores da editora e por quem – ela sabia – tanto seu chefe quanto o Professor de Literatura Respeitado por Seus Pares nutriam um desprezo visceral.

Ela adorou a ironia daquela coincidência e instintivamente mordeu a pontinha da unha do dedo anular, esquecendo-se por um instante do esmalte recém-colocado. Em seguida, recobrando o profissionalismo, perguntou para o Resenhista Que Não Tá Nem Aí para a Crítica Acadêmica o que ele estava fazendo com o celular do Revisor Sem Muita Paciência. Ele informou ter o amigo ido ao banheiro e, antes de passar o aparelho a ele, que acabava de voltar, esfregando as mãos nas calças e reclamando da falta de papel toalha, não pôde conter uma cantada para a Secretária Meio Doidinha, que suspirou, e ainda suspirava quando o Revisor Sem Muita Paciência pegou o celular.

Colocado a par do imbróglio na editora, a que a Secretária Meio Doidinha tratou de pintar com cores ainda mais estrambóticas (ela adorava essa palavra) que a do seu esmalte, o Revisor Sem Muita Paciência deu uma retumbante gargalhada, que era a sua maneira de dizer estar pouco se lixando para os achaques de estrelismo do Autor Cujo Primeiro Livro Fez Sucesso e de seu séquito de baba-ovos. Fossem todos procurar o sujeito que inventou a vírgula e reclamassem com ele, ora bolas, que ele tinha mais o que fazer!

Eles estavam num bar a no máximo três quadras da editora, fato que fez o Resenhista Que Não Tá Nem Aí para a Crítica Acadêmica pensar em convidar a Secretária Meio Doidinha, de cujo roliço par de pernas lembrava-se bem, a se juntar a eles. Adorava relações iniciadas sob o signo do acaso. Tão inofensivas e transitórias quanto esses artigos não assinados típicos da era digital. Se você gostar de um deles, ele pensava, pode simplesmente guardar de recordação, ou até, se for o caso, colocar seu nome embaixo e mandar para um amigo por e-mail ou publicar no Facebook. Ninguém vai reclamar. Agora, se quiser certificar-se de que seu amigo vai ler mesmo, experimente pôr o nome de um escritor famoso. Um bem famoso, de preferência alguém que apareça em programas de TV e vídeos do YouTube. Que frequente celebridades. Na Rede, como na Idade Média, para desespero dos editores, não existe autoria. Os textos desfilam pelados, como numa suruba, e ninguém é de ninguém. Mas, claro, sempre havia a possibilidade de um autor nervoso (ou de um marido ciumento) não entender muito bem essas nuances, vamos dizer, do mundo globalizado.

O Revisor Sem Muita Paciência, por outro lado, não sabia quase nada de relações fúteis e muito menos de artigos anônimos. Primeiro porque era casado e segundo porque conhecia muito bem o peso da autoria de um texto. Fosse lá de quem fosse, não tinha jeito, sempre seria uma relação unilateral, em que o anonimato se restringia implacavelmente a ele, o revisor. De certo modo contudo achava isso bom, não falarem dele. Ninguém fala bem da revisão. Falar bem da revisão desqualifica o autor, falar mal exime-o de culpa. Todo mundo sabe disso, não só os revisores. Os resenhistas, como seu amigo ali do lado, talvez sejam os únicos que não sabem, se soubessem usariam essa tática contra os autores. Quando querem atingir um autor com um golpe baixo, os resenhistas geralmente saem à cata de erros de revisão. Ortografia, regência, concordância e tudo mais. Daí fica fácil para o autor devolver com um cruzado de direita bem no meio da fuça deles. Mas quem cai na lona é sempre o revisor. É o revisor quem paga o pato.

A prova disso estava a três quadras dali, na ampla sala de reuniões da editora em cuja mesa seria servida a sua cabeça como prato principal. Em torno dela, os canibais o esperavam. O Autor Cujo Primeiro Livro Fez Sucesso, ansioso, consultou o relógio pela décima segunda vez, enquanto o Professor de Literatura Respeitado por Seus Pares a todo momento escorregava os cotovelos no tampo lustroso da mesa, e isso estava dando nos nervos da Editora Deslumbrada com o Livro de Sucesso, que lançava olhares de reprovação para o seu sócio, o qual, por sua vez, se fingia de morto, e a coisa se estenderia nessa pasmaceira até o fim dos tempos porque, nós sabemos, o Revisor Sem Muita Paciência jamais se daria ao trabalho de aparecer naquele banquete, ops, reunião.

Eis então que esta história, até aqui razoavelmente realista, dá um salto rumo ao terreno do faz de conta. A Secretária Meio Doidinha teria levado à risca o recado do Revisor Sem Muita Paciência e, procurando na Wikipédia, que é o local por excelência do faz de conta, onde todo mundo explica tudo da maneira que melhor lhe convém, como uma fábrica daquele tipo de texto de que gosta o Resenhista Que Não Tá Nem Aí para a Crítica Acadêmica, dera com o “currículo lattes” do Sujeito Que Inventou a Vírgula.

Como ela conseguiu levá-lo até a sala de reuniões permanecerá um mistério. Talvez ela fosse uma espécie de fada (ou seria bruxa?) wikipédica se fazendo passar por Secretária Meio Doidinha, vai saber. A palavra vírgula, na sua etimologia latina, tem o significado de varinha. Talvez ela soubesse disso, talvez não, a partir daqui, tudo passaria a ser hipotético. Então, por um minuto, vamos imaginar que o sujeito dissesse não estar ali por acaso, que um sopro do destino o tivesse guiado até aquela sala. Vamos imaginar assim.

Na verdade – ele trataria de dizer –, não era propriamente o inventor da vírgula, mas um descendente de Aristófanes de Bizâncio*, funcionário da Biblioteca de Alexandria – este sim o verdadeiro Sujeito Que Inventou a Vírgula –, e de todos os que vieram depois dele (desse bibliotecário da Antiguidade), como por exemplo seu avô, responsável por convencer o editor de Clarice Lispector a publicar aquele famoso romance que começa com uma vírgula e que, naquela mesa, só o Professor de Literatura Respeitado por Seus Pares conhecia, mas infelizmente não havia lido e nem lembrava o título.

Diante disso, e sem mais delongas, o Descendente do Sujeito Que Inventou a Vírgula apresentaria o seu portfólio, onde constariam coisas como querelas de família, casos de litígio, contratos fiduciários e de herança, bilhetes de suicidas, cartas psicografadas, e toda sorte de questões em que uma vírgula mal colocada pudesse comprometer o bom entendimento das partes envolvidas.

Nada disso, no entanto, parecia impressionar aquele grupo, todos, por diferentes motivos, muito bem escaldados na arte de se livrar de advogados. Ainda assim, pode-se dizer que alguma coisa começou a mudar, não na concretude da cena, na sua semântica, mas em pequenos detalhes, vamos dizer que na sua pontuação. O Autor Cujo Primeiro Livro Fez Sucesso, por exemplo, nem achou estranho que os ponteiros de seu relógio tivessem parado, ou que a Editora Deslumbrada com o Livro de Sucesso fixasse um olhar cheio de ternura na direção do Editor Preocupado com os Outros Livros do Catálogo e pela primeira vez pensasse seriamente na possibilidade de publicar o Jovem Contista Talentoso, para a alegria do Professor de Literatura Respeitado por Seus Pares, que agora como por milagre conseguia manter firmes os cotovelos no tampo escorregadio da mesa. Nada disso o surpreendeu, e já indiferente a que lhe tirassem o ritmo nas frases do seu novo livro, tampouco estranhou quando se ouviu chamando a todos para jantar num restaurante bacana que tinha ido outro dia.

A Secretária Meio Doidinha foi a única a declinar do convite e correu ao encontro do Resenhista Que Não Tá Nem Aí para a Crítica Acadêmica, por quem naquele dia se apaixonou e com quem se casaria algum tempo depois, numa cerimônia simples da qual todos participaram, inclusive o Jovem Contista Talentoso, cuja aparência, agora que deu o ar da graça nesta história, não é assim tão nova. Ele tem motivos para comemorar, seu livro foi enfim publicado e está fazendo relativo sucesso, dentro daquilo que chama de seu espaço de atuação literária e sua editora, feliz com o resultado, de segmento promissor de mercado. Parece até que já está escrevendo um romance.

Só mesmo o Revisor Sem Muita Paciência não compareceu porque, além de ter marcado uma cervejada com o Descendente do Sujeito Que Inventou a Vírgula – seu mais novo amigo –, entre outras coisas, odiava casamentos; mas mandou um cartão de felicitações escrito em caixa alta e cheio de pontos de exclamação, e assim, com sua bênção ortográfica, todos viveram felizes para sempre,

 

* Não confundir com o seu xará ateniense, muito mais famoso, autor da peça As nuvens, na qual avacalha com Sócrates e com todos os educadores de seu tempo; não vendo utilidade nenhuma em seus ensinamentos e ainda criticando eles receberem dinheiro por isso. Bem atual, né mesmo? Mas não é esse Aristófanes que nos interessa aqui. Ele não.

 

 

 


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