A nação e a Universidade ameaçadas

Luiz Carlos de Menezes é professor sênior do Instituto de Física (IF-USP) e consultor da Unesco para propostas curriculares

 07/11/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 28/11/2018 às 18:51

Invasão do campus da USP pelo Exército quatro dias após a edição do AI-5 – Foto: Acervo Agência Estado

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“Quem conheceu os danos à vida democrática e à autonomia universitária devidos ao golpe militar de 1964 e ao ato institucional nº 5 de 1968 sabe quanto é temerária a possível condução ao poder de entusiastas daquele obscuro período a que nossa nação foi submetida. Por isso, independentemente de diferenças entre nossas convicções políticas, nós que vivemos aquelas circunstâncias, em que nossa condição de trabalho foi profundamente perturbada, nos associamos a todos na comunidade acadêmica que se opõem a qualquer retrocesso em nossa democracia.”

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Luiz Carlos de Menezes é professor sênior do Instituto de Física da Universidade de São Paulo – Foto: Acervo Pessoal

Este texto, com este título, é parte do que subscrevi com outros colegas e foi utilizado por funcionários, estudantes e docentes para anunciar uma reunião à qual fui convidado. A solicitação para escrever esta matéria decorreu da minha fala naquela ocasião e, aceitando a oportunidade oferecida pelo Jornal da USP, partilho com os que viveram ou não as décadas da ditadura militar, o que experimentei pessoalmente, como estudante e como professor em nossa universidade. Quando do golpe militar, senti seu direto impacto como estudante de graduação, pois atividades até então rotineiras, como atuação em centros acadêmicos, passaram a ser vigiadas e, a partir de qualquer conotação política, tratadas como subversivas. Estudantes e professores que se mobilizavam em defesa da democracia foram perseguidos no próprio campus, pois junto à Reitoria instalou-se um comando militar com acesso aos dados acadêmicos e com poder de intervenção. Assim, nossa atuação de resistência passou a ser praticamente clandestina, e a muitos professores submetidos à contínua ameaça só restou o exílio para universidades no exterior.

Pouco depois de ter completado minha graduação e começar uma pós-graduação, houve o Ato Institucional nº 5 com repressão ainda mais ostensiva, a despeito da qual foi mantido um esforço político para manter vivo o espírito acadêmico, a exemplo das Comissões Paritárias. A Paritária Central, que integrei, teve de mudar de sala várias vezes, por conta da batalha campal que ocorria ao lado, na Rua Maria Antonia, mas seu objetivo foi cumprido com a elaboração de uma proposta que, por exemplo, sugeria carreiras acadêmicas flexíveis, e mesmo hoje seria inovadora. O professor relator foi Antonio Candido e eu fui o estudante vice-relator, sendo a versão final publicada em jornais.

Polícia desocupa a Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 18 de julho de 1968 – Acervo Iconographia

Democracia é convívio com a diferença, com o dissenso, com a variedade de opções, de convicções, de escolhas, em que nem azuis nem vermelhos sejam compelidos a se calar ou a se exilar.

Algum tempo mais tarde, passei a acumular com a pós-graduação a função de professor na Escola Politécnica. Ilustro a repressão política nesse período lembrando que minhas aulas eram interrompidas por agentes, os quais exigiam a lista de presença de meus alunos para identificarem os que eles pretendiam deter, tendo sido ameaçado por não produzir tal lista, o que no meu caso era deliberado. Sendo a um só tempo estudante e professor, eu participava das assembleias de estudantes e também das de docentes, articulando suas deliberações. Isso chamou a atenção dos agentes de intervenção, e como eu já tivera uma “entrevista” com o coronel Alvin, chefe militar junto à Reitoria, se voltasse a ser levado a ele não escaparia de interrogatórios e suas consequências. Antes disso, segui como outros para um autoexílio, primeiro nos Estados Unidos e depois na Alemanha, onde fui professor universitário por alguns anos. Por cartas e recortes de jornais que me enviavam, acompanhei desolado o destino de colegas, alguns dos quais não sobreviveram.

Voltei ao Brasil e à USP em 1974, a convite de velhos colegas. Compreendia os riscos que persistiam, mas queria meus filhos crescendo aqui e prosseguir na busca pela restauração da democracia. Um duro golpe nos primeiros tempos foi a morte de Wladimir Herzog, um assassinato sob tortura apresentado como suicídio. Começamos então uma mobilização que deu início ao que mais tarde se chamou de “abertura”. Fizemos um documento de denúncia, aperfeiçoado quando reunimos colegas da velha Comissão Paritária, publicado de uma forma que ainda hoje merece ser historiada. Quando eu e Alberto da Rocha Barros apresentamos o documento no jornal O Estado de S. Paulo a Oliveiros Ferreira, um dos editorialistas daquele diário, ele quis se assegurar de que seria “matéria paga”. Obviamente, mostramos o dinheiro coletado e ele, sem comentar, abriu sua carteira e acrescentou sua contribuição.

Wladimir Herzog – Foto: Divulgação/Instituto Vladimir Herzog

Desde então, nossas universidades, em articulação com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), tiveram papel relevante na reconquista da vida democrática, em tantos processos e embates cuja descrição não caberia neste breve texto. Mesmo quando sua direção escolheu se omitir, a base atuante da Universidade de São Paulo teve papéis significativos, tanto na criação de partidos políticos não tutelados, de associações de classe autênticas, de meios de comunicação menos amordaçados, quanto na campanha por eleições diretas, e mesmo nas discussões que culminaram com a Constituição de 1988.

O momento atual é mais do que oportuno para recuperar essa história, pois quando o Jornal da USP publicar este texto, já terá sido eleito um novo governo federal, e se tivermos de enfrentar outra fase difícil, que seja com coragem e com alguma sabedoria que o já vivido propicia. Assim, não é supérfluo lembrar o que significa democracia e o que é conviver numa democracia.

Democracia é convívio com a diferença, com o dissenso, com a variedade de opções, de convicções, de escolhas, em que nem azuis nem vermelhos sejam compelidos a se calar ou a se exilar. Por isso, os que votaram com desencanto ou com convicção, os que se satisfarão ou se decepcionarão com suas escolhas, os que abraçarão propostas mais conservadoras e os que vão para a resistência contra elas, em uma democracia não são inimigos, mas circunstanciais adversários. O permanente embate de propostas é a alma da democracia, tanto quanto o pensamento sem contestação é a alma do fascismo. Se os que assumirem o poder souberem disso ou souberem que nós sabemos disso, será menor o esforço para garantir a liberdade e a busca por igualdade duramente conquistadas. Se não, iremos à luta e não será a primeira vez.

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