A filha de Eva, Rosana Paulino

Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP e membro da ABCA

 29/01/2019 - Publicado há 5 anos

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Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

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“A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo.”

Vladimir Maiakóvski

 

A Costura da memória, primeira retrospectiva de Rosana Paulino (São Paulo, 1967), com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery, dá sequência a um programa artístico-cultural dos museus paulistanos marcado pelo pluralismo estético e pelas discussões sobre a descolonização dos acervos. Exposições como Territórios: artistas afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca (2015), Diálogos ausentes (2016), no Itaú Cultural, e Histórias afro-atlânticas (2018), realizada no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, revisionaram os acervos dessas instituições, a linearidade histórica e os conceitos que envolvem recepção/percepção. A exposição de Rosana Paulino, aberta desde dezembro, enfatiza, sobretudo, “o reconhecer-se” nesses espaços de cultura, arte e educação.

Em três salas contíguas na Pinacoteca e a partir de 140 obras, a artista revisita suas raízes – tão próximas à maioria das mulheres negras brasileiras. Dos primeiros trabalhos, como Parede da memória (1994-2015) e Bastidores (1997), passando por Assentamento (2013) e As filhas de Eva (2014), até a produção mais atual, Musa paradisíaca (2018), Paulino coloca o dedo na grande ferida do País: a condição da mulher negra na sociedade. À artista não escapam nem as amas de leite – através das suas obras, essas amas nos contam sobre a invisibilidade e a violência do preconceito enraizado na cultura brasileira. Elas contam uma história já há muito tempo abafada.

Doutora em Artes Visuais e bacharel em Gravura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Rosana Paulino é protagonista no atual cenário da arte contemporânea e, através da pesquisa visual, histórica e de técnicas, expõe a face mais assustadora do preconceito racial, social e de gênero. Fios de costura, tecidos, agulhas, pequenas bonecas de terracota, bastidores de bordados, desenhos, impressões, gravuras, fotografias, vídeos e áudios – todos são objetos e técnicas explorados a fim de proporcionarem leituras inovadoras aos seus trabalhos.

A partir das técnicas mais simples (vindas do mundo doméstico) às mais sofisticadas (que exigem tecnologia e experimentação), a artista propõe que seus afetos, suas histórias e memórias misturem-se aos afetos, histórias e memórias do público – é o “conhecer-se” e “reconhecer-se” através da arte. Ela exercita a máxima de Victor Hugo: “Todo grande artista amolda a arte à sua imagem”. Verdadeiramente, ela se expõe a cada novo projeto.

Para além dessa entrega, registre-se que para a população negra brasileira, espaços como universidades, galerias e museus ainda não são lugares de pertencimento. Por muito tempo, a entrada de negros nesses locais era veladamente vedada ou consentida quando seu papel era o de subalterno – por tal razão, a condição de ver uma artista negra tratando de temas tão latentes aos seus e, acima de tudo, ocupando esses espaços “tradicionalmente de brancos” é um passo relevante na conquista de uma cidadania plena.

Artista e público aproximam-se pelas vivências. Vejamos que, em Parede da memória, a artista monta um mural, um “álbum de família” impresso digitalmente sobre delicados patuás. Assim, tem-se uma árvore genealógica – uma tentativa de reconstruir sua identidade a partir da ancestralidade. Para negros e seus descendentes (54% da população nacional), esta é uma questão-chave: a diáspora africana rompeu com os laços familiares e a reconstrução dessa linha condutora é uma memória cindida.

Bastidores é uma das séries mais conhecidas (em grande parte, a notoriedade vem da presença da imagem desta obra em livros didáticos). No processo de confecção da obra, quimicamente, Rosana transfere a imagem de mulheres negras para os bastidores do bordado e partes do rosto dessas mulheres, tais como olhos, bocas e gargantas, são costuradas de modo grosseiro. Essa sutura torna-se a garantia da guarda de segredos domésticos: são olhos que não podem ver; são bocas que não podem falar e gargantas que não podem gritar.

Na produção mais recente, Paulino discute o papel da “ciência” que deu bases para as teses de higienização e darwinismo social presentes, especialmente na transição entre o Império e a República. Nesse espectro, a série Assentamento remete diretamente aos navios negreiros e à escravidão justificada pela inferioridade da raça. O corpo de mulher escravizada é fotografado (frente, costa e perfil) por Louis Agassiz, durante a expedição Thayer, conduzida pelo zoólogo suíço-americano em 1865. Rosana “refaz” a imagem através de intervenções, tais como ampliações digitais, suturas, colagens, novos elementos compositivos e transposição às litografias. Da série Assentamento, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo recebeu em doação da própria artista, em 2017, duas litografias que estão em exibição na mostra O MAC USP no século XXI: a era dos artistas.

Na série As filhas de Eva, ela emprega técnicas mistas sobre papel azul para recriar imagens, incluindo retratos de africanos e sombras que evocam os pretos novos (escravos recém-chegados que pereciam face aos maus tratos da viagem). Nessa imagética, a artista recria a origem da flora e fauna brasilis. Lembremos ainda que todas as mulheres, inclusive as negras, são “filhas de Eva” – a primeira a provar do fruto do saber e, por consequência, ser expulsa do Paraíso. Todas nós somos transgressoras.

Musa paradisíaca traz a imagem de uma mulher escravizada carregando um bebê e, na cabeça, bananas. As imagens de azulejos portugueses e o trecho da letra Yes, nós temos banana, de Braguinha, completam o mosaico suturado. Dos diversos questionamentos que essa obra proporciona, um surge iminentemente de seu título: essa mulher, de fato, é musa de um Brasil visto como o Paraíso?

No geral, a exposição retrospectiva de Rosana Paulino espelha seus 25 anos de trajetória, suas experimentações técnicas, suas preocupações temáticas e os recursos de que lança mão para retratar de modo sensível a memória e a história de uma sociedade que ainda hoje é regrada pela crueldade. Sua denúncia nos desperta para a reflexão e para as experiências pelas quais passam as mulheres negras. Assim, nos permite, através da arte, forjar um novo mundo – um contexto mais justo, menos violento e cercado pelo afeto.

Espero que até aqui eu os tenha convencido da necessidade premente em visitar Rosana Paulino – a costura da memória, na Pinacoteca. Mas, caso ainda haja resistência, o testemunho da artista dá a cartada final: “Eu não consigo pensar a produção de arte sem pensar a questão da educação e o potencial para educação que a arte carrega”. Mencione-se aqui que a exposição também é uma lição de empatia à parcela da população que não é negra ou mestiça. Com a dor do “outro”, aprendemos História. São mais de 500 anos de resistência e de busca por liberdade – sentimentos caros aos descendentes de homens e mulheres escravizados, porém, sem educação não há liberdade possível. Estamos longe de termos uma sociedade capaz de enfrentar seus traumas, vilanias e apagamentos, mas, através da educação, já percebemos que o caminho é longo, porém, sem volta “à senzala” ou “à cozinha”.


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