A covid-19, a economia e a incerteza de Heisenberg

Por Sergio Adriani David e José Antonio Rabi, professores da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP em Pirassununga

 26/05/2020 - Publicado há 4 anos
Sergio Adriani David – Foto: Reprodução/FZEA

 

José Antonio Rabi – Foto: Reprodução/FZEA
No atual cenário devido à pandemia da covid-19 há uma palavra que está na ordem do dia: incerteza. Em recente artigo a este mesmo Jornal da USP, Gomes, Mello e Rodrigues (2020) descreveram e discutiram as três fases (quais sejam: reducionismo, experimentação pioneira fragmentada e abraçando as incertezas para superá-las) para superar incertezas em um contexto sócio-sanitário-econômico à sombra da atual pandemia. Mediante os desafios então acarretados, torna-se necessário, pois, não apenas estabelecer as devidas diferenças entre incerteza e risco – como bem apontado pelos autores supracitados – mas também propor meios para modelar e quantificar as incertezas.

Muitos pensadores já se debruçaram sobre tal conceito, dentre os quais Knight (1921), Freud (1927), Heisenberg (1927) e Keynes (1936). Werner Heisenberg, físico teórico alemão, formulou quantitativamente o princípio da incerteza segundo o qual é impossível fazer a observação com total acurácia da posição de uma partícula subatômica e, simultaneamente, determinar a sua velocidade. Nas ciências físicas, o princípio da incerteza ganhou amplitude, deu um novo sentido ao comportamento dual da matéria (a chamada dualidade onda-partícula) e contribuiu para o entendimento do mundo quântico moderno.

No que tange às ciências econômicas e políticas, a incerteza não tem sido profunda e adequadamente explorada enquanto conceito quantitativo. Com efeito, quase não há documentos científicos, tampouco registros ou debates entre pensadores e pesquisadores, dessas áreas do conhecimento na referida temática.

Não obstante, o princípio da incerteza parece apresentar-se naturalmente aderente a problemas de natureza econômica. Seria possível, por exemplo, uma empresa determinar a quantidade vendida e, simultaneamente, o preço de venda de um bem ou serviço? De fato, as empresas ou fixam um determinado preço e se empenham em vender a maior quantidade possível, ou determinam uma quantidade a ser produzida e buscam vendê-la ao preço que for possível. Como as incertezas no mercado estão quase sempre presentes, empresas industriais preferem escolher a quantidade, deixando o preço como variável de ajuste, se necessário, evitando o oposto.

Em outro exemplo, a queda recente nos preços internacionais do petróleo, em grande parte devido ao avanço da pandemia, faz com que os bancos centrais observem esse movimento como algo com potencial de impactar (para baixo) a inflação e contribuir para a queda da taxa básica de juros. Por outro lado, essa queda nos preços pode provocar significativo aumento da demanda por combustível (quantidade), reduzindo a parcela de contribuição ao ajuste monetário relativo à diminuição nos preços do petróleo. Trata-se da diferença entre olhar o fenômeno da incerteza no âmbito dos preços ou das quantidades.

Na medida em que a ameaça da covid-19 se materializa, faz-se presente um debate, nem sempre intelectualmente livre da contaminação ideológica, de interesses econômicos espúrios e de interesses políticos (muitas vezes pouco republicanos), que envolve, notadamente, uma grande incerteza quanto às melhores ações a serem tomadas bem como quanto aos seus desdobramentos.

No caso em tela, a incerteza emerge porque, no momento da decisão, a informação corrente pode não ser suficiente para induzir os agentes a tomá-la da maneira mais correta ou apropriada ou, ainda, ética. Isso outorga a ela (incerteza) um papel fundamental na decisão dos agentes políticos e econômicos e no comportamento da dinâmica das variáveis de interesse (número de infectados, número de mortos, disponibilidade de leitos hospitalares, impacto na renda das famílias, perda ou preservação de empregos, impactos políticos/eleitorais, entre outros).

Para além das questões puramente filosóficas parece, portanto, razoável refletir a respeito da conveniência e/ou da necessidade de um entendimento mais amplo e de um efetivo uso de ferramentas quantitativas para nortear estratégias e planos de ação que permitam tomadas de decisões mais certeiras. Nesse sentido, é notório que a matemática avançada e os métodos quantitativos têm contribuído de forma substantiva, por exemplo, para a tomada de decisões econômicas mais precisas, permitindo que se alcancem efeitos desejados sobre o desempenho de empresas e de países.

Em uma dimensão mais abrangente, quando incertezas de ordem econômica e política se fazem presentes e, de alguma maneira, misturam-se, tal como ocorre na atual pandemia, urge que as melhores e mais precisas decisões sejam tomadas. Para avançar com elas na direção mais apropriada, devemos nos prover não só do conhecimento das mais consolidadas e modernas ferramentas matemáticas, mas também dos conceitos e princípios (tal como o da incerteza) dos quais já dispomos, adaptá-los a essa nova finalidade com vistas a mitigar os efeitos danosos e muitas vezes traumáticos que são deixados na esteira de crises profundas. Para tal, antes, devemos nos desprover de qualquer medo ou preconceito quanto ao uso desses poderosos instrumentos.

 


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