A ciência antártica como investimento: “by science we conquer”

Por Ignacio Javier Cardone, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP

 25/11/2019 - Publicado há 4 anos
Ignacio Javier Cardone – Foto: Arquivo pessoal

 

Resulta bastante comum ver a presença na Antártida como resultado de interesses geopolíticos e econômicos. Entendida assim, a participação de qualquer Estado nas pesquisas desenvolvidas nesse continente, não são mais do que a porta de entrada para os potenciais recursos naturais que o continente pode vir eventualmente a proporcionar. Contudo, a Antártida guarda uma importância muito maior e mais imediata para todos os países que lá marcam a sua presença: a de se colocar nas fronteiras do conhecimento em múltiplos ramos da ciência. Uma verdadeira aposta ao futuro.

O continente branco é, em muitos sentidos, único. Trata-se do continente mais frio, seco e com maior altura média do planeta, e o único no qual não existe população humana permanente. Isolado do resto do globo, foi apenas em 1820 que o continente foi efetivamente avistado, e só nos últimos anos do século XIX que a exploração deste começou. Peça central na dinâmica global, a Antártida se vincula com a grande maioria dos fenômenos atmosféricos e marinhos que possibilitam a vida na Terra tal e como a conhecemos.

E é justamente por isso, que conhecer o que lá acontece é fundamental para conseguir interpretar os fenômenos naturais globais. Exemplo de tal utilidade foi a identificação do buraco na camada de ozônio, em meados dos anos de 1980, produto das pesquisas atmosféricas desenvolvidas na Antártida. Somado a isso, sendo o território mais prístino do planeta e graças a suas baixas temperaturas e a grossa camada de gelo que cobre quase a totalidade da sua superfície, a Antártida é o reservatório de dados históricos mais completo disponível a respeito da história natural do nosso mundo.

Por todo o anterior, o conhecimento científico desenvolvido lá é de suma importância para determinar a história climatológica, geológica e geomagnética de nosso globo; interpretar os fenômenos geofísicos atuais e conseguir desenvolver ferramentas para a sua modelação com maior precisão e celeridade; e compreender o complexo sistema ecológico que permitiu a algumas espécies sobreviver às extremas condições das regiões polares. Além disso, a pesquisa sobre temas tais como a prevalência de organismos em ambientes extremos oferece promessas de implementações tecnológicas não imaginadas, que podem vir a assistir o enfrentamento de condições extremas cada vez mais prováveis como consequência do aceleramento no ritmo do aquecimento global. Isso tem levado a iniciativas tais como o Antarctic Science Horizon Scan que resultou no Antarctic Roadmap Challenges, uma iniciativa para estabelecer metas de pesquisa de longo prazo que possam assistir a tomada de decisões nas questões mais urgentes e pertinentes da atualidade.

Assim, apesar de o Sistema do Tratado Antártico garantir o compartilhamento dos dados coletados no continente branco, a obtenção de dados orientados às necessidades de cada país e o desenvolvimento de capacidades técnicas e analíticas necessárias para o seu aproveitamento dependem da operação efetiva no território, da formação de pessoal especializado e da colaboração internacional. Para isso, a constituição de um programa antártico nacional sustentado resulta indispensável.

Desde 1982, o Brasil tem desenvolvido o Programa Antártico Brasileiro, Proantar, o qual em pouco tempo tem conseguido um lugar de destaque em nível mundial. Com pesquisas nas áreas de geologia, climatologia, biologia marina e terrestre, arqueologia e outras, o Brasil tem conseguido se colocar no interior das discussões de ponta nas fronteiras dessas disciplinas científicas. Contudo, as dificuldades orçamentárias e operativas produto dos vaivéns políticos no apoio proporcionado ao programa fazem com que tal desenvolvimento tenha ficado muito aquém das possibilidades da ciência brasileira.

Para que o Brasil consiga superar as limitações experimentadas até hoje, a ciência antártica deve ser vista como o que é: um investimento para o país a partir do desenvolvimento científico e tecnológico, e não apenas como um instrumento de interesses geopolíticos e econômicos. Isso permitirá ao Brasil entrar de cheio nas discussões que dizem respeito à mudança climática, aos fenômenos geomagnéticos globais, às dinâmicas ambientais atmosféricas e marinhas, à prospecção biológica, entre outras. Mas, para isso, a política antártica deve ser convertida em uma verdadeira política de Estado, com financiamento de longo prazo e centrada nas necessidades do desenvolvimento da pesquisa científica.

Às vésperas da inauguração da nova Estação Antártica Comandante Ferraz – após a destruição que devastou as instalações anteriores e cobrou a vida de dois militares brasileiros –, cumpridos já 60 anos desde a assinatura do Tratado Antártico, 44 anos desde que o país aderiu a tal instrumento, e 37 desde o começo das atividades brasileiras na Antártida, resulta oportuno insistir na necessidade de renovar o compromisso com esse investimento no futuro, e nas possibilidades de que o Brasil seja não só beneficiário, mas também protagonista no desenho das respostas que os diferentes países terão que dar aos desafios da mudança climática e o desenvolvimento humano.

 


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