A arte pop brasileira – “… que gostava de política em 1968”

Alecsandra Matias de Oliveira é Dra. em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Arte (ECA-USP)

 24/10/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 26/10/2018 as 16:07

Visitantes observam uma pintura do artista estadunidense Edward Hopper – Foto: Autor não identificado via Bienal de São Paulo

 


Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Contra a foice e o martelo, a família marcha com Deus pela liberdade” – o slogan da “revolução gloriosa” de 1964 ainda ressoava nas ruas, quando em 1968 o mundo passou por insurreições estudantis: além das barricadas francesas, eclodiram os movimentos de contracultura nos EUA, a Primavera de Praga na antiga Tchecoslováquia, o Massacre de Tlatelolco no México, protestos no Japão e a Passeata dos 100 mil no Brasil. O desejo era de romper com todas as estruturas de poder em busca da felicidade. A promessa desses jovens era a de virar o mundo de ponta-cabeça.

Considerado um ponto de inflexão (tal como, 1789, 1848 ou 1917), o ano de 1968, por seus antecedentes e por seus desdobramentos, tornou-se “ano-monumento”, na historiografia contemporânea, ou seja, é “aquele capaz de fazer recordar e reavivar” as reivindicações ligadas às ações libertárias e à mudança dos padrões da vida cotidiana. Ou ainda, aquele que rememora as críticas às instituições e à elitização da arte através de cartazes e de frases em muros que convocavam a “Incendiar o Louvre” ou ter “a Gioconda no metrô”.

Fomentados pelo espírito de revolta contra as hierarquias, obrigações e regras, os estudantes brasileiros entoavam: “Abaixo a ditadura!”. Como golpe final à liberdade de expressão, o governo militar apoiado por grupos de direita instituiu o Ato Institucional no. 5 (o AI-5), decretando o recesso do Congresso e cassando dezenas de mandatos de parlamentares. A medida permitiu ainda a intervenção nos estados e municípios, a suspensão da garantia de habeas-corpus em casos de crime contra a Segurança Nacional e o confisco de bens. Enfim, cortaram-se as liberdades civis.

As presenças da censura política e da repressão normatizaram o pensamento e o comportamento dos brasileiros por mais de uma década. Para as artes o saldo foi de: 500 filmes e 450 peças interditadas, 200 livros proibidos e mais de 1.000 letras de músicas censuradas (OLIVEIRA, 1995, p. 133). Nas artes visuais, táticas subversivas e estratégias de escamoteamento integraram, cada vez mais, os trabalhos. Adotaram-se a marginalidade experimental como enfrentamento dos códigos moralistas em vigor, o emprego de um alto nível de codificação e a circulação da obra em circuitos alternativos (como, os cineclubes, performances e a arte postal, por exemplo). Em alguns casos, o “terrorismo cultural” destruiu obras e levou muitos artistas à clandestinidade e ao exílio. Professores como Mario Schenberg (físico e crítico de arte) foram aposentados compulsoriamente na Universidade. Mas, observemos como os artistas e críticos de arte ligados à pop se comportaram diante dos acontecimentos de 1968.

Um pouco antes do AI-5, a IX Bienal de São Paulo, também conhecida como a “Bienal do Pop”, trouxe as obras de artistas norte-americanos como Jasper Johns, Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Robert Rauschenberg e Edward Hopper – a crítica à sociedade de consumo era o mote desses trabalhos. A pop americana admitia a crise da arte que se estendia desde o início do século XX e expôs a massificação da cultura popular capitalista. Buscando a estética das massas, essas obras aproximaram-se do kitsch. Porém, a grande polêmica nessa edição da bienal ficou por conta da retirada pela polícia federal, antes da abertura da mostra, das obras Lousa Sepucral, de Cybèle Varela, e Meditação sobre a bandeira nacional, de Quissak Jr., consideradas ofensivas e antinacionalistas – fato que nos coloca diferente leitura entre a nossa pop e a americana. Qual seria a tônica que provocou a censura das duas obras brasileiras no certame?
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A obra de Andy Warhol, ‘Saturday Disaster’ [Desastre de Sábado] – Foto: via Bienal de São Paulo
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Talvez, eventos ocorridos meses depois nos revelem mais pistas. No IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, Nelson Leirner submeteu à avaliação do júri a obra Porco empalhado com presunto pendurado no pescoço e essa foi aceita. Provocativo, Leirner publicou no Jornal da Tarde uma fotografia da obra e questionava os critérios do júri para o aceite. Neste ponto, existiu uma forte contestação ao sistema da arte que envolvia instituições artísticas e críticos de arte: “o que, afinal, é considerado arte?”, perguntava o artista.
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As presenças da censura política e da repressão normatizaram o pensamento e o comportamento dos brasileiros por mais de uma década. Para as artes o saldo foi de: 500 filmes e 450 peças interditadas, 200 livros proibidos e mais de 1.000 letras de músicas censuradas (OLIVEIRA, 1995, p. 133).
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Ainda no mesmo salão, impactados pela recente morte do guerrilheiro argentino Che Guevara, Rubens Gerchman, José Roberto Aguilar e Claudio Tozzi apresentaram painéis com essa temática. Agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) tencionaram retirar os trabalhos considerados subversivos. Che Guevara Vivo ou Morto, de Tozzi, era uma obra tão carregada de crítica aos regimes autoritários que militantes de extrema direita destruíram o painel a machadadas (mais tarde, ela seria reconstituída pelo artista, tornando-se uma das peças principais de sua produção).

Nos três episódios envolvendo a Bienal e o Salão de Arte Moderna do Distrito Federal já se identificava a crítica travestida de ironia à ditadura militar e ao velho sistema de legitimação da arte – marca profunda dessa produção pop brasileira. Percebe-se também a sombra da censura militar cercando as exposições. Nesse sentido, o embate entre arte e ditadura estava definitivamente posto às claras. Aqui, as perspectivas divergem: para muitos pesquisadores, “não foi a arte que enfrentou a ditadura: foi a ditadura que enfrentou a arte” (CAYSES, p. 115).

De qualquer modo, a ideia de morte como símbolo do momento político e a denúncia da prática de tortura exercida pelos militares se fazem constantes nos trabalhos de João Câmara Filho e Antônio Dias (recentemente falecido), assim como a acidez na obra de Rubens Gerchman, que se apropriou de temas como o futebol, as telenovelas, os concursos de miss e a história em quadrinhos, evocando as idiossincrasias do regime e de uma sociedade conservadora movida pela cultura de massa.

Na série temática das bananas, Antônio Henrique Amaral nos convoca à imersão numa ironia amarga, referindo-se à situação política do país em fins da década de 1960 – comparável às “republiquetas de bananas”, termo pejorativo dedicado aos países latino-americanos militarizados e sob a influência dos EUA – lembremos que o golpe militar de 1964 foi apoiado e estimulado por agências governamentais norte-americanas e empresas multinacionais. Marcelo Nitsche, no trabalho Aliança para o progresso, 1965, também expôs a situação de submissão do Brasil para com os EUA, porém, em 1968, ele apresentou na “Bienal do Pop” as bolhas, grandes esculturas infláveis que permitiam a interação com o público – outro modo de subverter o estado de apreciação da obra (não mais a contemplação e sim a participação).

Obras de James Gill, Roy Lichtenstein e Tom Wesselman também fizeram parte da “Bienal do Pop” – Foto: Agência Estado via Bienal de São Paulo

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Na décima edição da bienal, a intervenção militar nas artes visuais atingiu campo internacional. Os eventos que originaram a também chamada de “Bienal do Boicote”, ocorreram em janeiro de 1969, quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi invadido por militares armados com metralhadoras. Sua diretora, Niomar Muniz Sodé, foi presa e as obras selecionadas para representar o país na Bienal de Jovens em Paris foram impedidas de participar da mostra francesa. Em fins de 1968, a Bienal da Bahia e mostras em Ouro Preto e Belo Horizonte tinham sido censuradas com semelhante violência. Iniciou-se, então, um movimento nacional e internacional de questionamento à Bienal de São Paulo – isso porque ela empregava recursos estatais em sua organização.

A adesão de Pierre Restany, crítico de arte, profundamente envolvido com o novo realismo (movimento que levanta questões semelhantes à pop inglesa e norte-americana) e encarregado da exposição de arte e tecnologia, foi o estopim para o movimento “Non à la Biennale”. A polêmica foi intensa, mas, ao fim, a Bienal abriu suas portas – não com a potencialidade que parecia ter antes do boicote, mas com o esforço de artistas e críticos que viram sua realização como um ato de resistência frente ao regime.

Assim, a arte durante a ditadura, especialmente a pop arte e suas derivações, estava politicamente comprometida com a expressão das ideias, a noção de contracultura e o fortalecimento de práticas de resistência. Passados 50 anos, o medo para alguns e o desejo para outros de uma intervenção militar está novamente entre nós. As referências ao regime militar, à repressão e às torturas existentes no léxico da arte pop brasileira parecem-nos necessárias a fim de reavivar a conjuntura que nos levou às restrições das liberdades individuais por mais de 20 anos.

Evidentemente, as estratégias das artes visuais contra a ditadura militar não orbitavam somente em torno das propostas pop, mas passavam também por outras poéticas, tais como a de Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Hélio Oiticica e Lygia Clark, entre tantos outros. O “É proibido proibir” de maio de 1968, esteve no tropicalismo e nas proposições de diversos artistas, contudo, essas são outras insurgências da arte …

 

Referências

ARACY, Amaral. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira (1930-1970). São Paulo: Nobel, 1987.

CORRÊA, Erick Corrêa e MHEREB, Maria Teresa. 68 como incendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018.

CAYSES, Julia Buenaventura Valencia. “ Isto não é uma obra: arte e ditadura”. Estudos Avançados, vol.28 no.80. São Paulo, jan./abr. 2014. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000100011. Acesso em 29 set. 2018.

OLIVEIRA, Alecsandra Matias. “Contexto sociocultural da década de 70”. In: AJZENBEG, Elza. Schenberg – Arte e Ciência. São Paulo: ECA USP, 1995, p. 129-142.

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