50 anos de “Texto/Contexto”, de Anatol Rosenfeld

Jaime Ginzburg é professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP)

 08/02/2019 - Publicado há 5 anos
Jaime Ginzburg – Foto: Reprodução

 

É preciso ler Anatol Rosenfeld. Nascido na Alemanha em 1912, o autor veio para o Brasil em 1937. Com formação sólida e competência rara, escreveu, ao longo da vida, reflexões sobre assuntos variados – teatro, literatura, psicologia, filosofia, história, religião, racismo, política, futebol, cinema, entre outros. Seus escritos constituem um legado de valor único.

Anatol Rosenfeld é um dos intelectuais mais importantes para a formação do pensamento crítico no Brasil. Jacó Guinsburg, no ensaio “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”, publicado na Revista USP (n.11, 1991), explica com clareza as convicções do autor em sua crítica ao capitalismo e à massificação, assim como a orientações fundamentalistas e etnocêntricas. Guinsburg comenta ainda que Rosenfeld, durante a ditadura militar no Brasil, se opôs ao regime através da escrita e de conferências.

Combinando escrita clara e reflexão aprofundada, escreveu Texto/contexto, publicado em 1969 pela Editora Perspectiva, em São Paulo. Esse extraordinário volume merece ser lembrado, pelo seu impacto ao longo do tempo, e relido constantemente, em razão de que oferece recursos para refletir sobre os processos históricos recentes.

Dividido em três partes – Reflexões estéticas, Temas históricos e Autores vários – o volume apresenta doze capítulos, incluindo dois ensaios sobre escritores brasileiros, “Mário e o cabotinismo” e “A costela de prata de A. dos Anjos”. Em seu prefácio, o autor indica que existe uma “relativa unidade dos trabalhos”, e que “boa parte aborda (…) o problema da máscara, do disfarce”.

Embora os capítulos tenham sido originalmente elaborados para publicação em periódicos, salta aos olhos a coerência interna do volume, confirmando a existência de uma unidade, estabelecida pela recorrência de questionamentos e métodos de abordagem. A noção de duplicidade, elaborada com o emprego de diversos termos (“cindir-se”, “contradições”, “máscaras sociais”, “duplicidade inevitável”, “teoria das duas sinceridades”, “homem desdobrado em ser e aparência”, “antinomias”, entre outros), atravessa as três partes do livro. Mais do que uma base conceitual, esses termos constituem mediações epistemológicas. É como se, para ajustar a precisão de suas observações, o autor constantemente necessitasse utilizar lentes que ultrapassam as aparências, e com essas lentes o mundo seria visto como espaço de antagonismos, no qual forças em confronto não se conciliam.

Em um percurso que inclui referências a Sófocles, Shakespeare, Proust, Kafka, Descartes, Schopenhauer, Freud, Nietzsche, Theodor Adorno, entre muitos outros, Rosenfeld trabalha, como o título do livro indica, com contextualizações. O volume é marcado por um cuidadoso rigor histórico. O crítico não é determinista, pois não considera que uma obra de arte é uma consequência direta de fatores externos. No capítulo referente a Shakespeare, Rosenfeld explica, em um segmento intitulado “Arte e história”, sua posição de leitura. Para ele, fatores sociológicos, filosóficos e psicológicos não são, em si mesmos, suficientes para explicar o valor do autor de “Hamlet”; porém, esse valor está associado a esses fatores. As especificidades do escritor estão ligadas a concepções teóricas do tempo em que produziu suas obras. Entre obras de arte e formas de pensamento conceitual, são propostos diálogos, respeitando as especificidades das obras.

Atento à barbárie da Segunda Guerra Mundial, ao racismo de seu tempo, ao impacto nefasto da ditadura militar e a variadas formas de exclusão social, Rosenfeld encontrou, em reflexões sobre cisões e antinomias, formas de suscitar inquietação e dúvida com relação aos temas que abordou. É notável sua capacidade de expor como recursos associados a choques estéticos, no fenômeno do “teatro agressivo” e na presença do “grotesco” nas artes, abordados nos capítulos 2 e 3 respectivamente, têm funções importantes. Nesse contexto, o teatro de Zé Celso Martinez Correa, articulado com Brecht e Artaud, mostra sua força de ruptura com a apatia social. Em contraste com padrões tradicionais que conferem à arte um papel desinteressado, são destacados os movimentos capazes de atingir o pensamento e os impulsos do público.

O capítulo sobre “teatro agressivo” é particularmente relevante para os leitores em 2019. Em tempos regressivos, com a circulação de ideias conservadoras e os avanços de posições que legitimam a violência e a exclusão social, dentro e fora do Brasil, é urgente a circulação e discussão de textos capazes de ensinar a pensar criticamente, com a clareza e a complexidade necessárias. É fundamental o reconhecimento de formas artísticas que rompem com a apatia e estabelecem espaços para dúvida e perplexidade. Rosenfeld estabelece a perspectiva de que a revolta é um dever de intelectuais, em face da urgência de que a realidade esteja em acordo com valores como democracia e liberdade. O choque artístico, segundo o crítico, rompe a aparência com o objetivo de estabelecer contato com a realidade.

Ao produzir conhecimentos tendo a duplicidade como mediação constante, Texto/contexto ensina a duvidar de certezas consagradas. Por trás da aparência de harmonia, a podridão; ultrapassada a ilusão de uma individualidade definida, a fragmentação do sujeito; em lugar de uma sociedade explicada e orgânica, processos contraditórios. Para o seu momento de publicação, o livro constitui uma epistemologia para um pensamento de resistência, no qual a reflexão crítica observa antagonismos nas artes e nas sociedades. Para Rosenfeld, em “Hamlet”, a natureza humana é posta em questão; em um conto de Mário de Andrade, os impulsos são duvidosos; o romance moderno desmascara a percepção imediata do mundo. Seus escritos podem ser analisados como se constituíssem uma espécie de pedagogia crítica para a produção de conhecimentos sobre fenômenos antagônicos. Onde a apatia e a alienação nada enxergam, é possível ver conflitos não resolvidos entre posicionamentos, modos de pensar ou grupos sociais. Merecem destaque, nesse sentido, as reflexões de Rosenfeld sobre a linguagem. Realidades contraditórias podem ser recriadas por figuras de estilo, como é demonstrado no capítulo sobre Andrade.

Entre as reflexões mais impactantes para um leitor em 2019, cabe mencionar duas. A primeira é a análise do conto “O poço”, escrito por Andrade, centrada no conflito entre um fazendeiro e seus empregados. Recorrendo ao conceito de dialética, Rosenfeld expõe a irracionalidade da teimosia de Joaquim Prestes, patrão e patriarca, que os obriga a buscar uma caneta caída no poço de sua fazenda. A linguagem do crítico expõe diretamente sua empatia com o sofrimento do empregado Albino. A segunda consiste na leitura de “Morte em Veneza”, de Thomas Mann. Ao analisar a construção do protagonista Aschenbach, para além de uma descrição precisa, Rosenfeld realiza um dos trabalhos mais notáveis da ensaística no Brasil. Recursos como a intercalação, o emprego de parênteses, o uso de aspas, e sobretudo um trabalho irretocável com os adjetivos, contribuem para delimitar mudanças de ritmo, pausas inesperadas, suspensões de pensamento e provocações de choques. Para falar de um espaço devastado pela peste, e de um personagem que integra estranheza e paixão, Rosenfeld construiu recursos formais que impedem a leitura apática ou apressada, e motivam um interesse por olhar com atenção para o que está sendo arruinado. Esse interesse é fundamental para o momento presente. É preciso ler, frase a frase, esse livro que completa 50 anos.

 


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