1968, 69, 70, 71, 72………..83

Janice Theodoro da Silva é professora titular aposentada do Departamento de História e ex-presidente da Comissão da Verdade da USP

 10/10/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 16/10/2018 as 15:05

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Janice Theodoro – Foto: Matheus Araújo / IEA

 

1969 foi um ano de ausências. Ausências de professores aposentados pelo Ato Institucional n. 5, interrupções de aulas e falta de liberdade. Os estudantes selecionados para entrar na Universidade de São Paulo nos anos 60 e 70 deveriam, em plena adolescência, aprender a conter suas emoções, suas ideias e seu corpo.

Apesar da repressão frequente, as manifestações juvenis encontravam canais para se exprimir. Vicejavam canções de protesto, como Para não dizer que não falei das flores, É proibido proibir e O bêbado e a equilibrista, onde o sonho era a volta do irmão do Henfil, já no fim dos anos 70. Propagavam imagens, como a de Leila Diniz, grávida e feliz nas praias do Rio de Janeiro, e multiplicavam-se as passeatas, expressando o inconformismo com a ditadura.

Em 1969, a USP sofria o segundo abalo. O primeiro foi em 1964, com o golpe militar, seguido da abertura de centenas de Inquéritos Policiais e da aposentadoria de professores, em sua grande maioria da Faculdade de Medicina. Cartas anônimas circulavam denunciando professores acusados de atividades comunistas. O clima político estimulava a discórdia. O Departamento de Parasitologia e, em especial, os professores envolvidos com a Saúde Pública, foram perseguidos e aposentados em razão de problemas internos à faculdade com fortes roupagens políticas.

O segundo abalo, em 1969, foi diferente do primeiro. A invasão e destruição do prédio da Maria Antonia depois de um embate entre estudantes da USP, críticos em relação ao golpe de 64, e estudantes do Mackenzie, alguns vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas-CCC, terminaram em tragédia com a morte de um estudante secundarista, José Guimarães. O regime militar recrudescia dia a dia. O Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, confirmava um novo ordenamento jurídico capaz de garantir uma aparência legal a procedimentos ilegítimos. Essa “nova legalidade” garantiu ao aparato institucional brasileiro novas formas de encobrir perseguições. Os procedimentos foram bem diferentes dos utilizados em outros países da América Latina, como Chile e Argentina.

Observando os dados levantados por Antony Pereira, em seu livro Ditadura e Repressão, é clara a preocupação dos militares no poder com as aparências de legalidade. Entre os três países da América Latina que viveram a ditadura, o Brasil é aquele onde os mecanismos legais de perseguição foram mais utilizados e aprimorados. A proposição pode ser comprovada pela razão entre o número de pessoas processadas em tribunais militares e o número de mortos: no Brasil 23/1, no Chile 1,5/1 e na Argentina 1/71. Ainda que os números não sejam exatos é visível, no Brasil, a preocupação em vestir o autoritarismo, a violência e a perseguição com uma roupagem legal.

A Universidade, a partir de 1972, ao criar a Aesi (Assessoria Especial de Segurança e Informação), vinculada ao SNI (Serviço Nacional de Informação), lançou mão do Direito Administrativo, portanto de um aparato legal, para realizar triagens ideológicas impedindo a entrada em seus quadros de professores e funcionários em desacordo com a ideologia vigente.

As formas de controle da USP, até 1983, para impedir contratações foram: declarar suposta ausência de verba, atrasar a tramitação de um contrato utilizando como argumento a lei eleitoral ou, ainda, impedir a sua concretização com base em argumentos baseados na acumulação de cargos (embora o parecer da consultoria jurídica da USP fosse favorável ao pretendente).

Os mecanismos administrativos citados dificultaram a entrada de uma geração de jovens (1972 a 1983) com perfil crítico na Universidade. A perda para cada um deles foi imensa. Diferentemente da primeira geração (1964), cujos perseguidos tinham possibilidades de trabalho no exterior onde, não raro, dispunham de melhores condições para a pesquisa do que no Brasil, os jovens da geração dos anos 60 e 70, com frequência, sequer sabiam da perseguição institucional de que eram vítimas. Naquela época, os organismos de vigilância eram secretos. Somente em 2018 algumas listas com os nomes das pessoas que não poderiam ser contratadas pela USP foram encontradas pela Comissão da Verdade, no Arquivo do Estado (fundo Deops), permitindo esclarecer a perseguição.

Um outro pedaço dessa mesma história diz respeito àqueles que optaram por caminhos mais independentes, menos vinculados às instituições públicas, embora tenham atuado de forma significativa também na USP. A Escola de Comunicações e Artes-ECA, com primeiro vestibular realizado em 1967, carregou uma forte contradição de origem, reuniu tanto jovens professores com novas ideias e críticos ao regime militar, como recebeu professores vindos da antiga Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-FFLCH, vinculados aos setores mais conservadores da USP, como, por exemplo, o prof. Manuel Nunes Dias, responsável por perseguições políticas na escola.

Na ECA, especialmente no Departamento de Teatro, Cinema e Rádio e Televisão e no Departamento de Jornalismo e Editoração, houve uma história de forte perseguição política capaz de prejudicar, mas não silenciar, a produção dos cineastas e jornalistas.

Jean-Claude Bernardet, contratado em 1967, que atuava em cineclubes e nos Centros Populares de Cultura, foi aposentado compulsoriamente em 1969 e continuou produzindo.

Seu colega Thomas Farkas, pioneiro da fotografia moderna no Brasil e também cineasta, teve seu contrato indeferido em 1972. Suas imagens não foram caladas.

Sinval Freitas Medina, jornalista, perseguido na própria instituição, teve seu contrato cancelado em 1974. O jornalista Vladimir Herzog dava aulas de jornalismo na USP quando foi morto em 1975. Fora da USP continuaram atuando graças à competência e ao apoio dos amigos, compagnons de route. As histórias de companheirismo, de amizade verdadeira, são comoventes. Deixou saudades esta arte, antiga, de fazer amigos.

Inúmeros alunos, com trajetória profissional sem vínculos profissionais com a USP, membros desta comunidade, ainda que por pouco tempo, fizeram muita diferença no mundo das artes e na revolução dos costumes. Alguns nomes são expressivos: José Celso Martinez Corrêa, Rita Lee, Laerte Coutinho, entre tantos outros. Quando escuto e leio o livro de Rita Lee, compreendo melhor o papel da ECA a partir de 1975. O ano foi marcante com uma greve estudantil simbolizando mudanças: da crítica às instituições políticas para um pensamento de raiz libertária, de descoberta de um mundo fora da caixinha, para além de uma linguagem conservadora da velha política. As cores eram outras. O vermelho e preto podiam combinar com um rosa choque. A temática de gênero começava a ser delineada.

 

Charge de Laerte Coutinho (à dir.)

 

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O protagonismo da USP na história do Brasil

A vida política, econômica e cultural brasileira contou com diversos ex-alunos, defensores de diferentes posições científicas, políticas, econômicas e culturais ao longo da nossa história. Tivemos dois presidentes, vários ministros, alguns economistas e muitos intelectuais renovadores da vida cultural. Qual é a base deste protagonismo?

A USP produziu e produz conhecimento. Mas, para além deste papel, a Universidade simbolizou, nos anos da ditadura, o espaço onde sobrevivia um pouco da liberdade de pensamento, de costumes e de ação. Os avanços na ciência e na tecnologia dependem de liberdade. Liberdade para se levantar hipóteses, de consentimento para colocar em discussão velhos paradigmas e de autorização e recursos das instâncias superiores para realizar a pesquisa. A construção de projetos e as descobertas de novas tecnologias dependem tanto da liberdade em torno da elaboração da proposição, como da permissão para uma crítica consistente. Na área das humanidades o foco, na época, era a construção do pensamento crítico a partir de diferentes matrizes filosóficas e políticas postas em questão.

 

Mortos e desaparecidos

Das 434 pessoas mortas ou desaparecidas no Brasil, 47 eram alunas da USP, ou seja, 10% do total de mortos e desaparecidos do território nacional. Entre os alunos que morreram, 70% deixaram de frequentar a USP entre 1967 e 1971 um pouco antes do seu desaparecimento.

Relatório Comissão da Verdade/USP, Vol.3, Mortos e Desaparecidos

O inconformismo dos jovens e as dificuldades em mudar, tanto a vida política brasileira quanto os costumes, levaram setores inconformados da sociedade brasileira e dos estudantes da USP a deixarem os bancos escolares e optarem pela prática política em tempo integral. Avaliaram as estruturas de funcionamento da sociedade brasileira, calcularam a importância da universidade naquela conjuntura e optaram pela política, considerando ser este o único caminho possível para romper as estruturas tradicionais e implantar mudanças sociais de raiz.

O sentimento de desencanto e a vontade de mudança eram nacionais. Se analisarmos o perfil dos estudantes da USP que foram mortos ou estão desaparecidos chegaremos ao número de 10% de todos os mortos e desaparecidos do Brasil. O número é grande para uma comunidade pequena em relação à população nacional. Num primeiro momento podemos pensar que os jovens envolvidos na política eram originários da cidade de São Paulo, em razão da grande concentração da população e de atividades econômicas importantes justificando o interesse pela política. Mas, quando olhamos a origem dos estudantes, observamos que parte significativa deles veio de diferentes cidades do Estado. Portanto a inquietação, a insatisfação e a radicalização do pensamento político eram um fenômeno que ultrapassava os limites da cidade de São Paulo e da USP.

Relatório Comissão da Verdade/USP, Vol.3, Mortos e Desaparecidos

A pergunta que se segue é: por que a USP agregou tantos jovens (35 homens e 12 mulheres) com a profunda decisão (deram a vida em nome de um projeto político) de se tornarem protagonistas de uma grande mudança para o Brasil, independentemente do preço que teriam que pagar?

Olhando a USP naquela época, era possível avaliar a sua importância no cenário brasileiro. Tratava-se de uma instituição voltada para a pesquisa, para a produção de conhecimento científico, consciente da importância de pesquisadores estrangeiros especializados, envolvidos em estudos de ponta, atualizados, capazes de auxiliar a formação de estudantes brasileiros. E, observando a história pelo ângulo dos estudantes, a USP era considerada uma instituição rigorosa na seleção de seus alunos. Poucos vestibulandos conseguiam alcançar as notas necessárias para cursar a USP, seleção exigente responsável por inúmeras críticas e movimentos de contestação por parte dos estudantes excluídos, nos anos 60.

Produção de conhecimento, professores e alunos inteligentes e sociabilidade ampliada, especialmente no Conjunto Residencial da USP-Crusp, é uma mistura potente.

A pergunta permanece: por que a USP sobreviveu como espaço de resistência?

Geraldo Siqueira[1] em depoimento para a Comissão da Verdade da USP descreveu bem a USP em 1971. Diz ele que a USP “era o que a gente chamou de ‘aldeia gaulesa’, lá do Asterix. Roma conquistou tudo, menos a Gália. A USP era a aldeia gaulesa. Fiquei com a impressão daqueles documentários da National Geografic com aquelas lagoas que, quando vai dando a seca, vão encolhendo e todos os animais vão beber água ali” (Relatório da Comissão da Verdade/USP, vol. 9, Depoimentos).

Quem bebeu a água desta lagoa?

Aqueles que consideravam o pensamento crítico e a vida acadêmica indispensáveis à sobrevivência. Aqueles que eram dependentes de um mesmo nutriente: a liberdade.

O pensamento crítico exige a presença do contraditório, de um outro indivíduo, objeto ou circunstância. A crítica exige liberdade na produção e no conhecimento na elaboração de diferentes hipóteses, liberdade para o questionamento das premissas levantadas por uma investigação científica, liberdade para a crítica aos argumentos apresentados para defender as hipóteses e, especialmente, liberdade para amar.

A vida acadêmica, como a própria palavra sugere, tem origem no Bosque de Akademos, lugar onde Platão estabeleceu sua escola filosófica, lugar onde o pensar, o exercício do intelecto, pedia ausência de limites para as ideias, exigindo espaço, alunos e liberdade.

Pelas razões citadas, a autora deste texto, ex-aluna, ex-presa política em 1971, professora aposentada da USP, atenta aos perigos que rondam a aldeia gaulesa, lembra: quem bebeu da água desta aldeia não esquece: liberdade, ontem, hoje e sempre.

Janice Theodoro da Silva

São Paulo,  outubro de 2018.

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[1] Geraldo Augusto Siqueira Filho

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Leia também o Especial Comissão da Verdade da USP:

Vítimas da ditadura relatam perseguição vivida na Universidade


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Leia mais

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